1. Cosmopolitismo e multiculturalidade

É difícil evitar uma sensação de estranheza quando, no metro da cidade universitária, em Lisboa, nos deparamos com as supostas palavras de Sócrates, o grego, nos azulejos: “Não sou ateniense, nem grego. Mas sim um cidadão do mundo.” Gera estranheza pois Sócrates não nos deixou qualquer escrito e as ideias que lhe atribuímos são aquelas que os seus discípulos lhe atribuem – estando aquela frase muito distante dessas ideias, em particular quando relatam os momentos que antecederam a sua morte. Se Sócrates tinha alguma certeza era a de que era cidadão de Atenas, a quem devia a condição de homem justo que respeita as leis da cidade.

Mas é verdade que, numa perspetiva histórica, ele se encontrava já numa fase de decadência do período dourado da polis, e a passagem do período clássico para o período helenístico representou uma mudança no modo como os gregos se viam no mundo: o seu posicionamento deixou de ser feito por relação à polis – como havia acontecido pelo menos desde o século VIII a.C. – e passou a ter como referência um espaço mais amplo: o kosmos, que as conquistas de Alexandre anunciavam. Tratava-se de uma nova disposição militar (a da conquista) que se traduzia não só numa nova disposição mental (ser kosmopolitês, cidadão do kosmos), como também em novas abordagens filosóficas, nomeadamente com o estoicismo, a primeira grande teoria da universalidade (e que podemos, com esforço e polémica, colocar nos primórdios do liberalismo).

É o estoicismo, e a sua abordagem universalista e racionalista – que se terá inspirado em Diógenes, o Cínico –, que vingará na civilização antiga que sucede à dos gregos: Roma e a sua abertura ao mundo como símbolo de passagem da velha polis à cultura cosmopolita. E é este o contexto dos azulejos da cidade universitária: aquela frase é de Plutarco, que terá vivido entre 46 e 120, e que a atribui a Sócrates vários séculos depois da sua morte.

Plutarco, de naturalidade grega e cidadania romana, representa bem essa fase histórica marcada pelas virtudes cosmopolitas e que foram recuperadas no século XX, quando a palavra cosmopolitismo se tornou parte do vocabulário sinalizador de virtude: as pessoas boas defendem sempre o cosmopolitismo e as cidades que valem a pena são sempre cosmopolitas e, por isso, devemos considerar-nos cidadãos do mundo. Tudo o resto é parolice e ignorância.

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Filosoficamente, o cosmopolitismo é uma teoria normativa. Não só defende um modelo político que desconsidera as lealdades nacionais e propõe mecanismos de governação globais (inspirados em projetos supranacionais como a UE e a ONU), como entende que o ideal cosmopolita é aquele que as sociedades justas devem ambicionar, de acordo com um comprometimento moral com todos os seres humanos. Projetos dúbios, mas que se têm tornado mais populares conforme as sociedades se têm tornado mais multiculturais.

2. Multiculturalidade e multiculturalismo

A distinção entre multiculturalidade e multiculturalismo é fundamental e a sua desconsideração, recorrente no espaço público, impossibilita uma discussão adequada deste tema. Falar em multiculturalidade ou dizer que uma sociedade é multicultural remete para o domínio da descrição factual da realidade. E, considerando o modelo globalista atual é uma descrição adequada para quase todos os países ocidentais, que passaram a ter de conviver com diferentes culturas no seu seio, ao contrário da tendência mais monocultural que, genericamente, caracterizou os países europeus nos últimos dois séculos (há exceções importantes, mas que constituem precisamente exceções).

A discussão sobre se queremos ou podemos evitar essa multiculturalidade terá de ficar para outro momento. Por agora, a questão é a de saber como lidar com a multiculturalidade: ou seja, é a de saber que modelos políticos existem para lidar sociedades multiculturais e como se refletem no domínio da lei, como é marca dos estados de direito ocidentais.

Durante muitas décadas, a resposta prevalecente foi o modelo assimilacionista, que nos diz, genericamente, que as pessoas que chegam a um determinado país devem assimilar a norma desse país, ficando vinculadas às regras e leis nacionais, nomeadamente àquelas que resultam da dimensão cultural. Assenta na tradição liberal individualista e de igualdade perante a lei, sem garantir direitos baseados em grupos, nomeadamente culturais. Em relação a um dos aspetos culturais mais sensíveis – a religião –, o modelo assimilacionista exige que a dimensão religiosa fique restrita à esfera privada, não podendo ser invocada no espaço público. O exemplo clássico deste modelo é o assimilacionismo francês, que impõe o princípio republicano da laicidade e recusa, nessa medida, a utilização de elementos religiosos no espaço público (tema diferente é o de saber se este modelo tem sido bem-sucedido em França).

Contudo, na década de 1970, surgiu, no Canadá, um novo modelo de integração, pensado sobretudo para lidar com diferenças culturais anteriores, nomeadamente as do Québec. Designado como multiculturalismo, caracteriza-se pela crença de que a pertença a um grupo cultural é de tal forma relevante para a identidade individual, que o estado deve reconhecer direitos de grupo – os chamados direitos culturais – e criar políticas da diferença. Prescinde, assim, da dimensão individualista do estado de direito liberal e perceciona a pessoa como parte de uma tradição cultural, que condiciona, decisivamente, o seu comportamento. Como diz João Cardoso Rosas, “Essas políticas englobam o tratamento preferencial no acesso à educação e ao emprego, as necessárias adaptações ao nível das línguas usadas no ensino oficial e dos próprios conteúdos curriculares, o apoio estatal às instituições representativas das minorias culturais, a concessão de direitos especiais sob a forma de direitos positivos (por ex., direitos especiais de representação política) ou de isenções legais (por ex., para permitir o gozo de feriados próprios, o uso de indumentárias tradicionais, o abate de animais de acordo com códigos religiosos, etc.).”

Multiculturalismo não é, assim, uma palavra inócua para significar “respeito pelas diferenças culturais”, como é muitas vezes usado entre nós. Trata-se de um modelo de integração que se traduz em políticas públicas e previsões legais de grande impacto. E que gera inúmeros problemas.

3. Os muitos problemas do multiculturalismo

A literatura referente aos problemas do multiculturalismo é vasta, ao ponto de alguns proporem já um modelo substituto de interculturalidade, pelo que me limitarei a destacar dois tipos de problemas.

O primeiro tipo abarca o que podemos designar como problemas liberais, por colocar em causa dois princípios básicos do sistema liberal: a lei igual para todos e a garantia de direitos e liberdades fundamentais. Como vimos, uma das políticas da diferença defendidas pelo multiculturalismo é a garantia de proteções específicas ou a atribuição de vantagens pela pertença a determinado grupo cultural. Ora, isto pode traduzir-se em alterações às regras jurídicas básicas, quando garante que, num processo penal, um arguido que pertença a um determinado grupo cultural possa invocar a chamada “prova cultural” (“cultural defense”, em inglês) para justificar o seu crime. Trata-se de uma situação prevista em muitos sistemas jurídicos e a sua adoção tem sido defendida academicamente em Portugal.

Ainda mais problemático é a crescente permissão para que, em países onde as comunidades muçulmanas são maiores, como no Reino Unido, surjam sistemas paralelos aos tribunais nacionais para a resolução de questões que afetam elementos desse grupo cultural. Chamados “Sharia Councils”, debruçam-se essencialmente sobre questões familiares (em especial, divórcios), mas levantam muitas dúvidas quanto aos direitos das mulheres.

Mas notemos como as próprias instituições internacionais já se encontram tomadas pelo pensamento multiculturalista. Em 2018, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, chamado a pronunciar-se sobre a condenação de uma cidadã austríaca por ter dito que o casamento de Maomé com a sua terceira esposa constituía uma situação de pedofilia, se recusou a garantir o direito à liberdade de expressão, subscrevendo a ideia de que aquela condenação é necessária “com o objetivo de proteger a paz religiosa na Áustria” e abrindo as portas à previsão de blasfémia.

O segundo tipo de problemas remete para a dimensão democrática, e numa dupla vertente. Por um lado, uma sociedade que adote os princípios do multiculturalismo está a minar a possibilidade de as estruturas democráticas funcionarem adequadamente. Afinal, as democracias modernas só foram possíveis após um longo processo de construção de comunidades imaginadas, para usar a expressão de Benedict Anderson, para formar uma identidade nacional comum. É esse lastro comum, é essa partilha de valores e interesses a permitir o funcionamento democrático. Historicamente, territórios multiculturais assumiram sempre a forma de impérios (de Roma ao império austro-húngaro); já o regime democrático foi criado numa pequena e homogénea polis grega.

Por outro lado, o multiculturalismo apresenta um outro problema democrático fundamental: é que a adoção das suas medidas e das suas políticas tem sido feita sem qualquer fundamento democrático, i.e., sem discussão pública das suas implicações e sem declaração explícita nas propostas partidárias ou nos programas eleitorais. Na verdade, este modelo tem sido imposto de cima para baixo, forçado pelas elites académicas e sem qualquer suporte popular. Depois queixam-se de que as pessoas se revoltam.