Os portugueses são acusados de muitas coisas no que à escravatura diz respeito. Acusam-nos de terem inventado o tráfico de escravos, o que é falso; de terem iniciado o comércio transatlântico dos ditos, o que é verdade; de terem sido responsáveis pelo transporte de 6 milhões de negros para as América, o que é um erro decorrente de  trafulhice ou confusão com os números; de só tardiamente terem abolido a escravidão, o que é relativo, pois depende do que se toma como termo de comparação; e de, no fundo, e na prática, não a terem abolido verdadeiramente pois, ter-se-iam limitado a substituí-la pelo trabalho forçado, o que, sendo verdade, é uma acusação vesga pois omite que, por norma, foi esse o procedimento usual na história do trabalho nos trópicos.

Foquemo-nos nesta última acusação que nos é lançada à cara como se fosse mais uma falcatrua ou artimanha portuguesa, mais uma nódoa deixada pelo homem branco na toalha do até então impoluto e irrepreensível mundo. Há centenas — ou serão milhares? — de pessoas de esquerda que acusam os portugueses ou os ocidentais de terem sofismado a questão da emancipação dos escravos e de terem sido falsos abolicionistas, condenando-os por terem ilegalizado a escravidão apenas para instituírem uma prática equivalente de exploração do trabalho. Mas ao mesmo tempo que verberam a conduta desses nossos antepassados muitas dessas pessoas — o activista Mamadou Ba ou o académico Francisco Bethencourt, por exemplo — celebram a grande revolta de escravos ocorrida na colónia de Saint-Domingue, em 1791, e a revolução que se lhe seguiu e que iria dar origem ao Haiti, e enaltecem Toussaint Louverture, o negro que, a partir de certa altura, liderou, de armas na mão, os destinos dessa revolução e da colónia. De toda a evidência as pessoas em questão ignoram que Toussaint era um partidário da substituição do trabalho escravo por trabalho forçado e foi exactamente esse regime que ele aplicou em Saint-Domingue enquanto foi preponderante na colónia, isto é, de 1795 a 1802.

Na verdade, o que se passou foi que a escravidão foi abolida localmente pelo comissário republicano francês Léger-Félicité Sonthonax, em agosto de 1793. Mas no preâmbulo da sua proclamação abolicionista, o comissário, dirigindo-se aos que iriam deixar de ser escravos, advertiu-os logo: “não pensem, porém, que a liberdade de que irão passar a gozar é um estado de preguiça e ociosidade. Em França toda a gente é livre, mas toda a gente trabalha.” E substituiu a escravidão não pela liberdade plena, mas por trabalho forçado remunerado e por formas menos duras de castigo físico (o chicote foi proibido). Ou seja, os ex-escravos que não fizessem parte do exército passariam a designar-se por cultivadores, mas tinham de continuar a trabalhar nas plantações.

Quando Toussaint Louverture, um ex-escravo africano que possuíra escravos, se tornou, em 1794, general francês e, depois, líder efectivo de Saint-Domingue, não se desviou um milímetro do que fora estabelecido por Sonthonax, bem pelo contrário, reforçou essas estipulações. Como ele próprio escreveu no artigo 5º de uma proclamação de 1795, “todos os cultivadores, vinte e quatro horas após a publicação da presente proclamação, regressarão às fazendas e plantações onde trabalhavam, para aí voltarem ao trabalho”; e, no artigo 6º do mesmo documento sublinhou que “o trabalho é necessário, é uma virtude, e o bem geral do Estado. Todo o homem ocioso e vadio será preso para ser punido de acordo com a lei”. Em 1797, voltou ao assunto advertindo que “se há, entre os ex-escravos alguns tão estúpidos que não percebam que é necessário trabalhar, os seus líderes negros têm suficiente autoridade para os fazer entender que sem trabalho não há liberdade”. Em conformidade, muitos dos ex-escravos continuaram a ser forçados a permanecer e a laborar nas plantações, muitas vezes por métodos muito duros. O também ex-escravo Dessalines, que Toussaint nomeara Inspector da Agricultura, recorreu largamente aos espancamentos desses ex-escravos e a enforcamentos sempre que a produção de açúcar e de outros géneros tropicais baixava.

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É claro que, tal como viria a acontecer, depois, durante a era do colonialismo em África, o trabalho coercivo provocou várias reacções de rejeição e revolta de pessoas que apenas aspiravam a ser pequenos proprietários rurais ou a poder viver nas cidades, e não podiam fazê-lo, o que, para elas equivalia a um regresso à escravidão. Em junho de 1795 o proprio Toussaint foi ferido com uma bala na perna durante protestos. Mas não inflectiu no seu rumo, tendo passado a mandar julgar e, eventualmente, executar os principais recalcitrantes, como aconteceu em 1796, a um negro chamado Ettienne Datty e a onze dos seus homens — execução que provocou novos levantamentos — e sobretudo em 1801 quando o próprio Toussaint mandou matar vários ex-escravos negros sem julgamento, entre os quais Moyse, seu sobrinho e, até então, um dos seus mais fiéis seguidores, por este ter apoiado uma rebelião dos cultivadores negros contra o trabalho forçado nas plantações.

Nesse mesmo ano de 1801 Toussaint Louverture fez aprovar uma Constituição que o nomeava governador perpétuo de Saint-Domingue, que mantinha o regime de trabalho forçado e que até admitia, no seu artigo 17º, a reabertura do tráfico transatlântico de escravos para suprir à falta de mão-de-obra. A ideia era comprar africanos directamente aos comandantes dos navios negreiros vindos de África. As pessoas assim adquiridas seriam, depois, libertadas — o artigo 3º dessa Constituição estipulava que não poderiam existir escravos naquele território, “onde a escravidão está para sempre abolida e todos os homens nascem, vivem e morrem livres e franceses” —, mas ficavam obrigadas a permanecer e a trabalhar nas plantações e sujeitas ao seu regime de trabalho coercivo.

Depois de, em 1802, Toussaint ter sido preso e enviado para França, onde ficou encarcerado até à sua morte no ano seguinte, o regime de trabalho continuou na colónia e prosseguiria quando, em 1804, ela se tornou independente da França e passou a chamar-se Haiti. Alguns dos generais negros, que tinham sido escravos, apoderaram-se das plantações de proprietários brancos absentistas ou massacrados, e puseram o trabalho forçado de outros negros a fluir em seu proveito. Em 1827 o presidente Boyer publicou mesmo um código de trabalho forçado e anti-vadiagem haitiano quase tão duro como aqueles que os europeus viriam a aplicar mais tarde, em África.

Os woke que desde 2017 nos massacram os ouvidos com os pecados coloniais de Portugal no que respeita à escravatura e ao trabalho forçado, não só ignoram isto como desejam continuar a ignorá-lo. Porquê? Porque querem permanecer de mãos livres e ideias simplistas a acusar o colonialismo dos portugueses e a louvar e endeusar os escravos rebeldes e outros revolucionários negros. A verdade histórica estraga-lhes o belo arranjo floral ideológico que já tinham construído em volta da perversidade única do homem branco que abolira a escravidão, mas sujeitara os negros, ex-escravos ou não, a um regime de trabalho forçado. Recusam-se a tomar conhecimento de que não foi apenas o homem branco que o fez; foram, logo de início, os próprios libertadores e anti-escravistas negros.

Ou seja, aquilo que o Portugal de finais do século XIX e da primeira metade do século seguinte fez relativamente à questão do trabalho nos trópicos, e que encontramos conceptualizado e estipulado na legislação dessa época — por exemplo, no Regulamento do Trabalho dos Indígenas, de 1899 —, não foi nada de novo nem nada que os próprios líderes anti-escravistas negros não houvessem já feito. Mas quem conseguirá meter estas elementares verdades em certas cabeças?