Por uma necessidade biológica que se pode resumir a “fugir ao leão e apanhar a zebra”, mas que é difícil de explicar sem recorrer a alguma matemática e física, o cérebro humano é uma fantástica máquina de compressão de informação. Consegue receber uma quantidade gigantesca de dados dos seus cinco sentidos, dados esses independentes entre si, e interligá-los por características comuns de forma a reduzir o tempo de processamento necessário para produzir uma decisão ou um ato. Corro numa direção porque o bicho é um leão, ou corro na direção contrária porque é uma zebra. Por exemplo, interligando os pontos da imagem que o leitor agora está a ver por cores, os pontos que são pretos vão formando símbolos e o leitor consegue rapidamente identificar esses símbolos, em vez de passar 1 com trinta zeros à frente de anos para processar uma única letra. Se não passa esse tempo todo a identificar uma letra, tal deve-se ao mecanismo de compressão do cérebro.

De onde vem esta necessidade biológica? Do facto de o ser humano viver num ponto ridiculamente pequeno do universo. Tão pequeno que não se consegue perceber as interações entre os objetos físicos que se passam fora da nossa escala de tamanho. Nós não conseguimos “ver” – sem recurso a maquinaria especial – a curvatura do espaço-tempo a que chamamos de gravidade, não “vemos” os campos de força eletromagnéticos. “Vemos” os seus efeitos, vemos a luz e não voamos pelo espaço fora, por exemplo. Mas se fosse possível perguntar a uma orca sobre a gravidade ou sobre a luz, ela não perceberia a pergunta. Isto porque para o nosso cérebro funcionar bem (e o da orca), ele precisa daquilo para que foi construído: a independência dos dados que recebe. Se esses dados são interdependentes, deixam de ser entendidos pelo nosso cérebro e precisamos de recorrer a outro tipo de “inteligência” para lá chegar, alguma da qual só agora conseguimos vislumbrar com os progressos na IA.

E estará o leitor a pensar por que raio se haveria de preocupar com a curvatura do espaço ou com a natureza da luz? Na verdade, se as suas prioridades ainda são fugir ao leão e apanhar a zebra, pode ser dispensado dessa preocupação. No entanto, o ser humano já saiu desse estágio há milénios pela evolução do instinto económico que o faz procurar produzir e consumir sem limites. Há novos universos onde o ser humano “caminha”. O universo social, o universo económico e o universo ecológico. Podemos encará-los como parte do universo físico, ou não, mas numa coisa são diferentes: já não é verdade que ocupamos um ponto ridiculamente pequeno destes universos. Eles já não são para nós uma infinidade de dados desconexos, mas são todos interligados. Ou seja, são uma tragédia para os nossos cérebros onde a intuição, o cálculo, a estatística, e outras construções mentais baseadas na mesma “maquinaria” que nos faz fugir ao leão, colapsam e deixam de fazer sentido. Fazer sentido, neste caso, significa traduzir a realidade em que vivemos.

Tudo isto vem a propósito de uma sessão na Rádio Observador onde estive, com gente bem mais inteligente do que eu, a discutir a evidência nas tomadas de decisão, e onde se elencou uma série de casos onde a racionalidade parece ter ido de férias porque a nossa “máquina” não perceciona essas interligações. Sessão essa que não deve ter sido ouvida pelos membros do governo, senão não teriam aumentado a taxa de carbono sobre os combustíveis com a desculpa de que o preço destes caiu nos mercados, e que me traz à questão de hoje.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

O universo económico é composto de interações. As orcas não têm economia, os chimpanzés também não.  Só nós temos esta infindável troca de formas de trabalho para satisfazer infindáveis necessidades. Os outros seres são uns sortudos que só precisam de comida, reprodução e segurança; enquanto nós precisamos de comida, reprodução, segurança, iPads, Netflix, férias na Tunísia… Digamos que do ponto de vista físico o sistema é esse, algo que não pára de crescer.

Mas se o nosso cérebro não funciona bem nesses universos, então o que fazemos? Projetamos o sistema físico em algo que conseguimos tratar, algo que vamos olhar de forma confortável para o nosso cérebro: uma medida numérica onde a matemática funciona, a estatística funciona e até a intuição funciona. Algo onde conseguimos fazer medições. Essa projeção é feita traduzindo todo o sistema físico em algo a que chamamos de “dinheiro”. Atenção que esta tradução não é o sistema físico, nem o traduz em rigor. É apenas algo que conseguimos tratar, uma ilusão confortável, digamos assim, mas que é uma invenção de inquestionável sucesso. Como é que eu consigo medir o meu trabalho? Projeto sobre o meu sistema numérico onde a matemática funciona e tenho uma medida. Então e o trabalho do outro? Faço a mesma coisa. A troca faz-se quando os dois acham que estão a trocar exatamente a mesma quantidade medida sobre o sistema numérico, embora saibam que aquilo que estão a trocar são formas de trabalho completamente diferentes. Mas a física não está na projeção, está na troca em si.

Se olharmos para a troca e decidirmos que queremos ficar com parte dela, então vamos falar com um dos entes que está a trocar e dizemos que vamos ficar com uma fração da parte dele. Claro que a troca não se faz porque agora este ente (o Zé), a quem fomos cravar uma fração da parte dele, não vai dar em troca o suficiente para que esta se faça. Então o outro ente da troca (o Manuel) vai ter de reduzir a forma de trabalho que entrega. Óbvio? Ou seja, não importa se vamos tirar ao Manuel ou se tiramos ao Zé. No fim do dia, ambos vão “pagar” pela fração que tirámos em igual montante ou a troca não se faz e deixa de existir. Visto assim é fácil de perceber, mas vamos ver a coisa no conforto do nosso cérebro, ou seja, na projeção numérica.

A projeção da forma de trabalho que o Zé entrega é reduzida pela quantidade que fomos lá buscar, pelo que a projeção da forma de trabalho do Manuel também é reduzida, isto é, menos dinheiro. Repare-se que não estamos a dizer que o Manuel trabalha mais ou menos, a projeção é que tem de ser menor e, portanto, a medida da forma de trabalho do Manuel também é menor, apesar do trabalho ser o mesmo. A mesma coisa podemos dizer da forma de trabalho do Zé se reduzirmos a projeção. A esta redução chamamos de “imposto”. Vamos à projeção da forma de trabalho sobre o sistema numérico e subtraímos parte dessa projeção (dinheiro) para dar a entidades que não fazem parte da troca.

No sistema confortável ao nosso cérebro, cobrámos imposto a um. Na verdade, isso não aconteceu no sistema físico real. O que aconteceu foi que cobrámos aos dois a mesma quantidade e essa conclusão é relativamente óbvia quando nos afastamos do sistema de medida confortável ao nosso cérebro e olhamos para a troca “atómica” do universo económico.

Se alargarmos agora este racional a todo o sistema de milhares de milhões de trocas “atómicas” diárias, quando decidimos cobrar mais impostos aos mais ricos e menos impostos aos mais pobres estamos a cair num erro. Na verdade, estamos a cobrar o mesmo imposto aos dois, porque ser rico é a capacidade de fazer trocas. Quando o governo decide aumentar a taxa de carbono sobre os combustíveis porque os combustíveis baixaram e o consumidor vai gastar o mesmo, esse aumento de impostos vai cair sobre todos aqueles que consomem bens e serviços que, de forma direta ou indireta, façam trocas que envolvam combustíveis, ou seja, todos.  Se o governo aumenta impostos é porque quer ir buscar dinheiro a todos, ricos e pobres, de igual maneira.

Então, cobramos mais aos ricos e menos aos pobres, certo? Errado. Lembremo-nos que, mesmo que achemos que estamos a cobrar só a um, vamos cobrar a mesma coisa a ambos, na otimista hipótese de a troca ainda se fazer.  Cobrar mais aos ricos, na verdade, implica cobrar mais aos pobres. A ideia de impostos progressivos é um produto desta ilusão confortável, que se torna confortável apenas a quem vive de cobrar impostos.

Note-se que os impostos são cobrados na projeção do sistema, não no sistema. O Estado cobra-nos dinheiro, não nos diz “Das 14:00 às 18:00 és meu escravo” (ainda que seja isso que sentimos às vezes…). Aquilo que pode acontecer pela cobrança dos impostos é que trabalhemos mais para resultar na mesma projeção e, em termos da medida numérica, pareça ficar tudo na mesma.

Deixem-me dar a ressalva de que não se defende aqui a inexistência dos impostos. Até prova em contrário, eles são necessários para o bem comum. No entanto, o bem comum não é feito de distribuir dinheiro. Este é só, como já repetimos aqui várias vezes, a projeção numérica do sistema da troca de trabalho.  Aquilo que contribui para o bem comum é mais trabalho. Mais professores, mais médicos, mais polícias, etc. que, claro, trocam o seu trabalho com todos nós, por via do estado, e isso também tem uma projeção numérica.

A mensagem para levar daqui é que não existem impostos para ricos ou para pobres. No fim, todos pagam o mesmo admitindo que a troca se faz na mesma. Se não se faz, pior ainda porque isso significa desemprego. É isto evidente para todos? Bem, a história mostra que os impostos são cada vez mais e que a diferença entre ricos e pobres é cada vez maior. Mostra também que quanto mais impostos cobramos, menos produtivos tendemos a ser. É imediatamente evidente? Essa é a questão que se justifica no facto de para o nosso cérebro as coisas se passarem na projeção numérica e não no sistema físico. Acabamos, por isso, por sofrer com uma fiscalidade que só é confortável para o cérebro primitivo.