Os portugueses queixam-se de quê? Ganham, por enquanto, o 23º melhor salário médio da Europa, bem acima dos habitantes do Kosovo e da Moldávia, coitados. Para cúmulo, exibem o 28º maior poder de compra de todo o continente, é verdade que aquém da Roménia e do Chipre, mas um pedacinho além do Montenegro e a milhas do Cazaquistão, pobrezitos. Não admira. Por cá, a inflação está só meio pontinho percentual acima da média da Zona Euro, que rondou em Agosto uns reles 9,1%. A propósito, desde o início do ano que só em 16 membros da mencionada Zona o preço dos alimentos aumentou menos que em Portugal. E, salvo os restantes 26, também somos o país da UE em que os índices de pobreza aumentaram menos: sublinhar os 2,3 milhões de pobres é uma atitude populista e que visa esquecer os 7 milhões e tal de remediados ou francamente ricos.

Os nossos privilégios não têm fim. Graças a taxas que não excedem os 60% do preço final, e apesar da natural ganância das gasolineiras, o gasóleo, da última vez que vi, era para aí o 35º mais barato da Europa (e a gasolina a 37ª). E não promete piorar muito. Para cúmulo, somos o 23º país da UE com menos impostos na hora de comprar um carro, e nem vale a pena falar no pouquíssimo que custa mantê-lo. De resto, o automóvel particular é apenas uma opção, felizmente em desuso. Boa parte de algumas cidades de certas regiões do litoral dispõem de uma excepcional rede de transportes públicos, os quais, se não estiverem em greve ou avariados, funcionam impecavelmente. E não preciso recordar a invejável e pertinente rede de ciclovias.

A habitação? Não me façam falar da habitação. Até ver, a subida do preço das casas nunca chegou aos três dígitos. E, embora não haja dados explícitos (não interessa aos estrangeiros que estas coisas se divulguem), acredito que uma moradia geminada na Moita continua a ser um pedaço menos dispendiosa que uma “penthouse” em Berlim ou Paris. O agravamento das prestações, decorrente das taxas de juro a cargo do BCE que o exemplar governo tenta contrariar com generosidade, dificilmente ultrapassará as centenas de euros mensais. E refiro-me a apartamentos de gabarito, estilo T2 e tal. Não acredito na subida vertiginosa da prestação de um óptimo estúdio com 35 m2 em Cabeceiras de Basto. E um estúdio que estará quentinho no Inverno: a electricidade é a 30ª mais barata da Europa. O gás natural, suponho, idem. E um cobertor polar, acabei de constatar, compra-se por 8€ em loja da especialidade.

Que mais querem? Como se as benesses não fossem bastantes, o governo admite eventuais dificuldades e tira do próprio bolso uma substancial ajuda para que os cidadãos, os que não são bilionários e auferem 2700 euros, possam enfrentar algum imprevisto. São dois mil milhões, quase metade do que se investiu – e bem – na TAP, quase um terço do acréscimo em receita fiscal que, por causa da inflação, o Estado arrecadou – e bem – no primeiro semestre do ano. Em Outubro, que está à porta, os pensionistas receberão pensão e meia, a classe trabalhadora receberá 125 euros para esbanjar no que lhe apetecer. Somente a má-fé pode lembrar que, assentada a poeira dos cálculos, os primeiros vão perder 200, 400 ou 600 euros por ano a partir de 2024, e que 125 euros é uma fracção do que o fisco arranca regularmente aos segundos. Em 2024, com jeito, inúmeros pensionistas já faleceram. E se a população activa nem assim se satisfaz, que emigre para ver como elas mordem na Moldávia.

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Para lá de traírem a pátria, os que emigrarem mostram imprudência. Esta semana, os profetas da desgraça, que teimavam na falência da segurança social, foram informados de que as reformas do futuro rondarão os 40%, quiçá 50% dos últimos salários. Alguém arrisca perder tamanho maná? E ninguém, de perfeito juízo, abandonará o melhor SNS do mundo, dado que as urgências fechadas neste ou naquele hospital não comprometem as que permanecem abertas. Nem o melhor sistema educativo do mundo, o que se comprova pela irrisória quantidade de alunos que reprovam e pela quantidade de professores que, apesar de insuficientes, ainda existem. Nem os melhores lares de idosos do mundo, logo que não haja feridas abertas e formigas. Nem os melhores estudos do mundo para o melhor novo aeroporto de Lisboa do mundo. Nem o melhor clima, a melhor comida, o melhor vinho, as melhores feiras medievais, as melhores rotundas e as melhores alucinações do mundo.

Nem, sejamos francos, o melhor governo. Nisso, não há dúvida de que tivemos sorte, aliada ao mérito dos que, na hora do voto, escolheram com sensatez. Liderado por um estadista de dimensão rara, e composto por personalidades da confiança do estadista e do ISCTE, é um governo que não mente ao povo excepto sempre que os factos arriscam promover a instabilidade política e social. Um governo que vai penalizar os lucros excessivos das empresas – quais? – que ousam desgostar do prejuízo. Um governo que assegura a “transição energética” e a “transição digital”. Um governo que prescreve a “convergência”, nem que seja com a Nicarágua. Um governo que batalha pela igualdade de “género” e do que calha nas Forças Armadas e onde calha. Um governo que bloqueia o avanço da “extrema-direita”. Um governo que garante a carga fiscal e a justiça redistributiva. Um governo que sabe o que quer e que sabe o que é preferível nós querermos. Em suma, um governo que dá esperança.

Não significa isto que, no limite, os portugueses não se vejam forçados a refrear ligeiramente a vida de abundância que levam desde que o PS virou a página da austeridade. Caramba: houve a pandemia e há a guerra. Na pandemia, um vírus danado encerrou sozinho comércios, indústrias, blocos operatórios e as áreas dos supermercados destinadas a livros e brinquedos. A guerra explica as chatices que sobram. E nem invoco as alterações climáticas, essas bandidas. Temos de aceitar a realidade. Não temos de comer todos os dias. Mas importa agradecer, sobretudo ao dr. Costa, os dias em que comemos.

Os portugueses queixam-se de quê? De nada. Aliás, os portugueses não se queixam. Perante a imensa miséria que nos espera, isso é notável, para não dizer doentio. E para não dizer desumano.