Há 80 anos o meu avô era um dos poucos médicos analistas que havia em Lisboa; todos os seus clientes eram particulares e ele cobrava o que queria. Dizem-me que até tinha um táxi por sua conta para ir fazer colheitas ao domicílio…

O meu Pai também foi Médico Analista (Patologia Clínica) e teve o seu laboratório. Só que apareceram as caixas de previdência e os seus clientes passaram a ir fazer análises com as requisições da “caixa”. Teve a vantagem de facilitar a “procura”, aumentou a clientela, mas a prazo teve para si três inconvenientes: facilitada a procura apareceram muitos laboratórios e postos de colheitas em Lisboa aumentando a concorrência; a tabela de preços era determinada pelas Caixas de Previdência e não por ele e passou a ser 1/3 do valor da tabela privada- e os doentes “privados” desapareceram pois passaram todos a levar a requisição, primeiro da “caixa de previdência” e depois do SNS ; os pagamentos deixaram de se serem feitos na hora mas diferidos, muitos meses e erraticamente, resultando em problemas de tesouraria.

As requisições das caixas de previdência foram, entretanto, substituídas pelas requisições do SNS e as tabelas impostas pelo Ministério da Saúde. Uma primeira tabela acordada entre o Ministério da Saúde e a Ordem dos Médicos em 1980, ficou mais de uma década sem ser atualizada tendo ficado, devido à elevadíssima inflação naquela década, reduzida a um terço do seu valor. A isto acresceu os atrasos nos pagamentos que chegaram a 9 meses. Sei bem do que falo porque no início dos anos 90, pus licença sem vencimento e fiquei a gerir o laboratório que era do meu Pai que se tinha reformado. Informatizei e criei postos de colheitas, mas… sei bem do aperto de quem tinha rendas de vários postos de colheitas para pagar, pessoal para pagar, juros do banco a mais de 25% e aparelhos a substituir e o dinheiro não entrava…

Depois de um movimento que desencadeei, que culminou com uma reunião de mais de 200 laboratórios de todo o Pais, na Curia, o Presidente da Associação dos Médicos Patologistas Clínicos fez um acordo com o governo em que apenas garantiu que até ao final do ano os pagamentos ficassem a seis meses e prescindiu de qualquer revisão de preços. Percebi que era o fim dos pequenos laboratórios e na semana seguinte vendi o laboratório a um laboratório que queria crescer e que mais tarde viria por sua vez a ser comprado por um dos grandes laboratórios de Lisboa. Os pequenos laboratórios praticamente desapareceram todos e hoje o sector está totalmente robotizado e os laboratórios tonaram-se em empresas sobretudo de capital e gestão. Mas extremamente eficientes e hoje os doentes recebem o resultado das análises, por mail, às 3 horas da tarde, no próprio dia.

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Relato isto porque ilustra vários aspetos do regime convencionado.

A intermediação do Estado entre os prestadores de cuidados de saúde permitiu baixar as tabelas para 1/3, e garantir o acesso gratuito ou praticamente gratuito ao sector dos exames complementares de diagnóstico a toda a população, democratizando assim o acesso à saúde. Por outro lado, a gratuidade levou ao aumento da procura e em consequência ao aumento dos prestadores e expansão da rede prestadora.

O aumento da procura e de prestadores levou a existir forte concorrência o que levou a um permanente reajuste do sector, com investimento na modernização e a uma melhoria da qualidade da oferta; quer na acessibilidade quer na rapidez de resposta quer na qualidade.

E, assim, da iniciativa privada, e do seu investimento, resultou a cobertura de todo o País em exames complementares de diagnóstico, fundamentais a toda atividade médica e apesar da permanente ameaça política de acabar com os convencionados

Sem qualquer dúvida o sector convencionado é o sector da Saúde que melhora funciona em Portugal. Liberdade de escolha, tecnologia de ponta, acessibilidade, excelência de atendimento, resultados imediatos, e baixo custo.

Contudo na Lei de bases discutida ideologicamente à esquerda ficou:

Base 6
Responsabilidade do Estado
1 – A responsabilidade do Estado pela realização do direito à proteção da saúde efetiva-se primeiramente através do SNS e de outros serviços públicos, podendo, de forma supletiva e temporária, ser celebrados acordos com entidades privadas e do setor social, bem como com profissionais em regime de trabalho independente, em caso de necessidade fundamentada.

Ou seja, todo o sector convencionado está a prazo, e para o Partido Socialista e toda a esquerda não faz parte dos planos futuros.

E de facto, na disputa das migalhas do Orçamento da Saúde, regularmente o lóbi público , que não gosta nada de ter concorrência, se vem queixar dos “milhões gastos com os convencionados” fazendo por ignorar que esses tais milhões gastos são contrapartida por serviços pagos por valores semelhantes ou abaixo, em muitos casos muito abaixo, aos da tabela pública, mas com uma organização, rapidez e qualidade de atendimento que as instituições públicas não têm, sem riscos de greves, e feitos à porta de casa dos “clientes”

Acabar com o comparador que faz perceber as deficiências do público é o sonho… E por isso as Unidades de Saúde Familiar do modelo C (modelo convencionado), previsto na lei de um governo Socialista, nunca chegaram sequer a ser regulamentadas. Isto quando até podia ser uma forma de manter ativos no Sistema de Saúde, contratualizando com o SNS, as centenas de médicos de família que se reformam nestes três anos.

Segue um exemplo de comparação entre a tabela das convenções e a tabela de custo no SNS (pela qual o estado cobra os serviços prestados pelo SNS a entidades terceiras, como por exemplo às Seguradoras pelos seus segurados, vítimas de acidentes rodoviários) , de alguns dos exames mais frequentes. Muitos dos preços ou são iguais ou são mais altos no SNS. Note-se que os Convencionados têm despesas, como a renda das instalações, que o Público não tem.

Diariamente, doentes meus vinham-me pedir a transcrição de exames pedidos em consultas hospitalares por duas ordens de razão: i querem evitar a deslocação ao hospital e perderem horas em espera para fazerem análises; ii o hospital não tem capacidade de realizar os exames de imagem em tempo útil para a próxima consulta, muitas vezes seis meses depois.

Ou seja, evoluímos de um sistema Liberal do tempo do meu avô, para um sistema em que o Estado deixa de ser passivo e assume um papel de intermediação, entre os prestadores privados e os utentes, conseguindo baixar os preços para menos de 1/3 da tabela privadas e garantindo a qualidade. Por outro lado, financiando, garante a democraticidade do acesso e o acesso de todos. Este sim, é o papel da Social Democracia.

Mas para a nossa esquerda é um escândalo “os privados” terem lucro numa atividade como a Saúde e ainda por cima com pagamentos feitos pelo Estado: o privado só chega onde houver possibilidade de lucro. Se me está a dizer que a educação e a saúde devem ser funções lucrativas, estamos confessados. Já percebi, para o privado a carne e para o Estado os ossos.

Este foi um comentário que puseram no meu Facebook que ilustra bem o que digo. E até há quem no PSD pense assim.

O curioso é que estas pessoas nunca se questionaram com o facto de toda a cadeia alimentar estar entregue aos privados. Desde a produção, à distribuição e comercialização e até à confeção. E que sem todo este circuito complexo estar a funcionar sobre rodas, rapidamente morríamos de fome, sendo que a alimentação é bem mais importante que a saúde e a educação pois sem ela não sobrevivemos.

E em todos os patamares da cadeia alimentar o que move os intervenientes é o lucro. E por vezes até há sectores subsidiados pelo Estado.

Fechem os olhos e pensem que o estado resolvia assumir a nossa alimentação. Gerindo empresas agrícolas públicas e a distribuição dos alimentos…

Ora o sistema capitalista assente na economia de mercado, fundada no lucro, está em todo o lado do mundo desenvolvido, e foi causa e razão do seu desenvolvimento; quando os sistemas socialistas desabaram com estrondo e só levaram os povos à miséria e à fome.

Não se percebe a relutância socialista em aceitar o princípio de que na saúde e na educação, a procura do lucro é tão boa e natural como em qualquer outro sector de atividade. E em perceber que o estado pagar a “privados” não tem nada de imoral ou impuro, bem pelo contrário, é, como vimos acima, uma forma do estado intervir num negócio, que, como todas as outras áreas e pelas mesmíssimas razões, devia ser privado, conseguindo melhores preços e garantindo o acesso a todos a cuidados de saúde de qualidade. Como acréscimo de que, estando o Estado de fora da prestação, pode usar o modelo de contratualização para exigir a qualidade e eficiência que não consegue a exigir a si próprio.

Note-se como, durante a pandemia, quem se chegou à frente na “testagem”, dando uma resposta fantástica e demonstrado uma extraordinária capacidade de adaptação às necessidades, foram os laboratórios privados convencionados. Os laboratórios dos hospitais públicos e os Centros de Saúde nem um esboço de movimento fizeram… (o mesmo com os testes de Antigénio em que foram as farmácias privadas, que avançaram).

O sucesso do sector convencionado, o êxito assistencial e económico das Parcerias Publico Privadas (a que se seguiu, depois do término, o desmoronar assistencial, a insatisfação dos profissionais, a derrapagem nas contas, e agora até existe uma investigação às compras…) não é suficiente?

E cada vez fica mais claro que a escolha a fazer é entre um modelo convencionado, dinâmico e adaptativo, de acesso geral e universal, e onde o custo do desperdício e da ineficiência fica por conta do prestador, ou um país com dois sistemas: um para ricos assente em prestadores privados e seguros privados (uma forma que a sociedade civil capitalista encontrou para se substituir ao Estado no papel de “regulador” do mercado, garantido o acesso à saúde por menor custo) e um para pobres assente num SNS cada vez mais exangue e insuficiente; realidade que previ aqui e todos os dias vemos estar a acontecer, com este governo que se diz socialista.

PS. Segundo a Lusa nas declarações do dia 11, o Ministro de Saúde disse ainda que “se e quando for necessário” não há qualquer preconceito em recorrer aos setores privado e social para garantir acesso aos cuidados primários de saúde. O que, se não tiver sido um lapso, parece ser uma declaração realista de saudar; e uma resposta positiva ao que aqui escrevi. Falta ver o concretizar.