Exmo. Senhor Ministro da Saúde
Dr. Manuel Pizarro

Estava a ponderar se escrevia ou não esta carta a comentar as suas declarações na Comissão Parlamentar de Saúde na AR, quando, num fim de um jantar em Aveiras de Cima, o marido de uma mulher ainda jovem veio falar comigo. Disse-me “Dr. Alvim, vivemos em Alcoentre (concelho de Azambuja) e a minha mulher apareceu agora com diabetes e não temos médico de família, porque não há. Apenas há um Médico e apenas são feitas renovações de receituário; e não fazem referenciação para o hospital sem consulta. E para conseguir consulta só ao sábado e como só atende 16 pessoas temos que ir às 2 horas da manhã. Onde podemos ir para ela ser seguida?”

Confirmei com ela as informações: “Tive diabetes na gravidez e por isso faço medições de tempos a tempos e agora estou sistematicamente com glicémias acima de 300. O que faço? Vou à urgência do Hospital de Vila Franca? Aqui (na Azambuja) dizem-me para ir a uma consulta de utentes sem médico de família a Benavente ou a Santa Iria mas também sem marcação”. “Já marquei uma consulta privada para uma clínica da Cruz Vermelha mas como depois faço os exames que me pedirem? Como e aonde posso ser seguida?”

Informaram-me ainda que no último concurso, em janeiro, as quatro vagas abertas para a Azambuja, onde existem mais de 17 000 utentes sem Médico de Família, ficaram todas por preencher. Aliás das 62 abertas na ARS-LVT, onde faltam bem mais que 500 médicos de Família, e mais de um milhão de utentes não tem Médico de Família, mais de metade das vagas terão ficado desertas.

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A sua antecessora demitiu-se por causa da morte de uma grávida devida a deficiência do SNS. A gravidade da falta de Médicos de Família não é tão mediática, mas é muito mais extensa. O aumento da mortalidade que se está a verificar terá a ver também com a falta de Médicos de Família?

O caso acima é um de milhares. Diabéticos e hipertensos que não estão a ser seguidos por falta de quem os siga é uma realidade inaceitável nos dias de hoje. Mas é o que está a acontecer. Assim como doenças graves estão a chegar a consultas hospitalares em estadios mais avançados

Este é o quarto artigo que escrevo sobre estre tema nos últimos três anos. E escrevo porque, apesar de silenciosa, a gravidade da situação, que já afeta mais de milhão e meio de utentes, é extrema. A situação acima descrita é apenas uma das milhentas.

Há três anos avisei em A Saúde pós Covid – Alerta Vermelho onde escrevi:

“O sector privado está neste momento a convidar, estrategicamente, a nova geração de Médicos de Família para constituir, também no sector privado, uma rede de cuidados de saúde primários tal como existe no SNS, em que passará a assentar e que vai ser a rede auto referenciadora para as suas unidades hospitalares.
Acontece que esta nova geração de Médicos de Família, extremamente capaz e bem formada é vital para o SNS; para substituir a geração que há 40 anos encheu o País de Médicos de Família e que se está agora, e durante os próximos 3 anos a reformar. Se o Estado não der rapidamente perspetivas a estes recém-especialistas (USFs de Modelo B e Modelo C), por muito desejo que tenham de se manter no SNS não terão como resistir em se passar para sector privado aonde irão ganhar mais, ter melhores condições de trabalho e onde sabem que o Sistema funciona e os seus doentes não terão que ficar um ano à espera de uma consulta hospitalar.
Escrevia-me uma recém especialista de Medicina Geral e Familiar:
Confesso que estou numa fase de fazer algumas decisões importantes e a minha ideia inicial sempre foi permanecer no SNS, ideia que infelizmente se tem desvanecido talvez por uma série de fatores que incluem, a falta de reconhecimento pelo trabalho que desenvolvemos, a desarticulação entre equipas, a divergência de formas e métodos de trabalho e a remuneração desajustada em relação à responsabilidade que o nosso trabalho exige.
Na mesma semana que fiz exame de especialidade, fui igualmente convidada por 3 privados diferentes para iniciar consulta, com projetos ambiciosos, bem liderados, com equipas com um objetivo comum e com uma sedutora remuneração.”

O governo assobiou para o lado e nos concursos cada vez mais vagas ficaram desertas…

Há dois anos sinalizei para o tsunami que estava a acontecer e apontei soluções: O problema dos sem médico de família e como o resolver?

“Este problema pode ser resolvido com a conjugação de três políticas, visando:
– Mais médicos na rede do SNS;
– Mais utentes por médico;
– Menos utentes na rede do SNS”

E aponto quais as medidas a adotar para cada um dos pontos. Mas o governo não fez nada e por isso, hoje na ARSLVT temos mais de 1 milhão de utentes sem Médico de Família. E há mais 1,6 milhões de utentes sem Médico de Família no Continente
Depois de no debate no Orçamento de Estado ter afirmado ir considerar a possibilidade de avançar com Unidades de Saúde Familiares do Modelo C (unidades privadas contratualizadas com o SNS onde os utentes acedem nas mesmas condições em que acedem hoje aos Centros de Saúde e USFs) , porque o garantir o atendimento dos utentes era a sua prioridade, agora informou o Parlamento de que afinal não iria avançar; com o argumento, logo desmentido na hora por uma deputada, de que o sector social não estaria interessado. (Nota : este tema é, antes do mais, um assunto dos Médicos e é com estes que deve falar)
Desperdiça assim o contributo da toda a muito numerosa geração de Médicos de Família que, como eu, se está a aposentar agora do SNS; e está a atirar para o Sistema Privado a excelente nova geração de especialistas de Medicina Geral e Familiar que não se revê no modelo de funcionamento (e pagamento) do SNS .

E o Senhor Ministro omitiu aos deputados que tem na sua posse há 4 meses uma carta a oferecer a minha disponibilidade para criar, sendo por minha conta todo o investimento, uma Unidade de Saúde Familiar de Modelo C na freguesia do Lumiar, onde existem mais de 14 000 utentes sem Médico de Família, e da qual nem sequer acusou a receção.

Posso lhe dizer que o preço que pediria seria o do custo de funcionamento por unidade ponderada de uma USF de Modelo B, por exemplo o daquela onde mais de 20 anos trabalhei e cujas instalações novas o senhor Ministro acabou de inaugurar, e com o compromisso de atendermos todas as situações de doença aguda no próprio dia e nas outras situações atendermos todos os utentes no prazo de até cinco dias úteis, e não as mais de 3 semanas praticadas no SNS, inclusive nas USFs de Modelo B

Lembro que em 1999 criei a única USF em Lisboa, em regime experimental, e uma das apenas 20 que apareceram em todo o País na altura; porque mais ninguém queria arriscar num modelo desconhecido. Mas pouco tempo depois, após termos desbravado o caminho, já havia mais 80 autopropostas para USFs em Regime Experimental. E do sucesso daquelas 20 unidades e da sua avaliação muito positiva em comparação com o modelo tradicional, resultou a Reforma de Correia de Campos de 2006. O importante é começar que o resto aparece a seguir.

E chamo-lhe a atenção para o que disse aos senhores deputados. “Um modelo C teria que ser com médicos que estejam fora do SNS, pois senão não se ganhava nada com isso” . Ora o modelo C foi legislado como um dos 3 modelos alternativos que os médicos poderiam livremente escolher de acordo com aquilo que é a apetência de cada um. Mais, o Senhor Ministro e o Senhor Diretor Executivo do SNS passam a vida a referir, e bem, que é preciso adaptar o SNS às expetativas de vida da nova geração de médicos. Ora o Modelo C é precisamente a melhor forma de conseguir isso. E é claro que só vai arriscar ir para um Modelo C (sem a segurança de ter o estado como patrão) quem não gosta de trabalhar neste SNS. Porque se estivessem bem certamente não mudariam. Assim à falta de modelo C os especialistas de Medicina Geral e Familiar estão a preferir os Hospitais Privados; quer saindo do SNS quer nem entrando, deixando as vagas no SNS por preencher.

Há um ano perante a catástrofe eminente escrevi como única solução para o imediato A terrível falta de médicos de Família. Uma única solução:

“Permitir, ou seja, criar condições para que quem tenha um Médico de Família no sector privado possa deixar o Médico de Família do SNS, em cuja lista de utentes está inscrito, e optar pelo seu médico de Família Privado, deixando o lugar vago para quem não pode recorrer ao sistema privado. Ou seja, permitir que o seu Médico de Família privado disponha dos instrumentos necessários à sua plena atividade. Que lhe possa requisitar exames complementares de diagnóstico pelo SNS, articular-se com as várias instituições do SNS e passar Certificados de Incapacidade Temporária (baixas).
No total (SNS e privados) existem Médicos de Família suficientes. Não existem é no SNS.
Não se pede que o estado pague o acesso a Médicos de Família privados. Pede-se apenas que os utentes que optem voluntariamente por um Médico de Família privado mantenham o seus direitos a exames complementares pelo SNS, ao acesso aos Hospitais do SNS e a baixas.
Agora ou isto, ou ter os mais desprotegidos sem Médico de Família.”

Já no início deste ano, quando se ultrapassou o milhão e meio de utentes sem Médico de Família lhe chamei a atenção entre a diferença entre o seu discurso simpático e a realidade que é da sua responsabilidade, e lhe pedi ação. Escrevi Mais de 1,5 milhões de utentes sem Médico de Família. O discurso do Ministro e a realidade

“Entramos em 2023 com menos 74 Médicos de Família que no mês anterior e ultrapassando 1,5 milhões de utentes sem Médico de Família. Em fatal incumprimento da Constituição que obriga os Governos a garantirem o acesso à Saúde. Porque o Médico de Família é a pedra basilar no acesso à saúde. É ele que, sempre de porta aberta, na sua continuidade de cuidados, nos conhece e nos escuta, que tem capacidade de se aperceber precocemente e atempadamente de alterações no nosso estado de saúde, que nos sossega ou nos avisa, que zela pelo nosso bem-estar, passado, presente e futuro.
Sem Médico de Família perdemos tudo isto. Perdemos o confidente, perdemos o aconselhamento, perdemos a prevenção, perdemos o diagnóstico e o tratamento atempados. Perdemos também o acesso a meios complementares de diagnóstico comparticipados pelo SNS (que são um elemento essencial da atividade médica; de que me serve o recurso de ir a um Médico de Família Privado se depois não tenho dinheiro para fazer os exames de que ele precisa para o seu diagnóstico?) e perdemos o acesso à referenciação para consultas das outras especialidades no SNS porque ela é feita exclusivamente através do Médico de Família do SNS. Perdemos quem nos passe baixa quando estamos doentes….
Sem Médico de Família o acesso à Saúde está bloqueado. Resta-nos recorrer às urgências, entupindo-as, quando nos sentimos doentes, ou ao setor privado pagando, tudo, do nosso bolso.”

Senhor Ministro da Saúde, peço-lhe que releia os dois primeiros parágrafos. Que releia o artigo 64 da Constituição (que o responsabiliza por garantir o acesso à Saúde de todos os portugueses e onde a palavra “público” não está), a Lei de Bases da Saúde, o Estatuto do SNS e o Estatuto da DE do SNS e que em conformidade, e é seu dever para com os portugueses, atue, já. Do que está à espera?”

Ao fim de seis meses de Ministro da Saúde já percebemos que se vai ficar pelas palavras bonitas quer para os utentes quer para os profissionais. Mas não vai fazer nada.

E por isso lhe deixo esta pergunta:

– O que respondo aquela utente?

PS. Se a recusa do Modelo C e da comparticipação pelo SNS nos exames pedidos pelos Médicos de Família privados (pelo menos aos que não têm MF no SNS e aos que optem por ser seguidos num Médico de Família privado deixando o seu lugar no SNS vago para quem não tem MF) é afinal apenas uma imposição do Ministro das Finanças, convém lembrar que o Estado está a poupar mais de 40 milhões de euros por ano nos ordenados dos médicos de família em falta e outro tanto em exames que não são feitos porque não há quem, no SNS, faça as consultas que lhe dariam origem. E o que poupa com a substituição de médicos no topo da carreira por jovens especialistas em início de carreira. Muitos dos que se aposentam agora ainda no regime de 42 horas com exclusividade (que em má hora um Governo Socialista acabou); negociado por Leonor Beleza com os sindicatos, o regime das 42 horas com exclusividade permitia uma razoável remuneração e fixou no SNS a esmagadora maioria dos médicos, e em especial na área da especialidade de Medicina Geral e Familiar; esta também criada na altura, no célebre DL 73/90. Enquanto a austeridade da troika poupou os que tinha menos e incidiu de forma proporcional aos rendimentos, esta austeridade é negra e afeta os mais desprotegidos e as pessoas doentes; com consequências graves na saúde, no imediato ou a prazo, dos que não têm médico de família.