O braço-de-ferro que opõe taxistas ao governo tem hoje o seu momento mais tenso, com o protesto dos táxis a atravessar Lisboa e concentrar-se junto à Assembleia da República. O objectivo? Pressionar o governo a desistir do decreto-lei que regula a actividade da Uber e do Cabify. Acrescentando ao que escrevi anteriormente, deixo cinco notas sobre o conflito e as suas repercussões políticas.
1. A actividade da Uber deve ser regulamentada – o nascimento de novos serviços tecnológicos não pode permanecer num vazio legal. Ora, podemos discutir se nesse enquadramento, como pretende o governo, faz ou não sentido introduzir limites de idade para os veículos, dísticos identificadores ou um mínimo de horas de formação para os motoristas. O que já não faz qualquer sentido é pretender que Uber e táxis estejam sob as mesmas regras quando são objectivamente serviços distintos: a Uber é um serviço privado, nascido de uma necessidade no mercado; os táxis são transporte público e estão regulados pelo Estado, nomeadamente pelas autarquias que determinam a quantidade de veículos a funcionar nas suas localidades. Daí que os táxis circulem nas faixas BUS e tenham benefícios fiscais, e os Uber estejam excluídos desses privilégios. Se as diferenças existem e são significativas, a sujeição a regras idênticas é um absurdo teórico.
2. O surgimento das plataformas da Uber e do Cabify no mercado acabou com o monopólio dos táxis. E, nesse novo contexto, a regulação dos táxis deve também ser ajustada à nova realidade económica em que se insere. Ou seja, para que haja justiça, não basta regular a Uber, há que entender que as alterações legislativas se exigem de ambos os lados da barricada. Um exemplo: a fixação do preço do serviço nos táxis. Tratando-se de um serviço público, enquanto foi monopólio, foi necessário que o Estado estabelecesse os preços dos vários serviços, de modo a prevenir abusos da posição monopolista. Hoje, com concorrência no mercado, essa fixação de preços limita a competitividade dos táxis e é, por isso, uma interferência prejudicial ao funcionamento do mercado. Como tal, se os taxistas quiserem aumentar a bandeirada nos períodos de maior procura, devem contar com flexibilidade para o fazer. Era a este género de flexibilização que a indústria do táxi deveria limitar a sua luta.
3. O protesto de hoje é injusto e expõe como os taxistas são os seus próprios inimigos – e, pela mesma lógica, como são os melhores amigos da Uber. Por três razões. Primeiro, porque usaram a sua situação de monopólio para, durante muitos anos, negligenciar as ineficiências do seu serviço: veículos degradados, agressividade ou má-criação, imprevisibilidade de tempos de espera, esquemas para enganar clientes com percursos propositadamente mais longos ou manipulação dos taxímetros, impunidade total. Não é a regra, mas tudo isto aconteceu vezes demais e existem dezenas de reportagens e relatórios que descrevem esta realidade. Ora, as empresas e associações sindicais do sector tiveram tempo de sobra para agir em conformidade, promover a modernização do serviço e penalizar a má conduta dos motoristas. Não o fizeram. Deixaram andar. E esse vazio foi preenchido pela Uber, que fez dele a chave do seu sucesso.
Segundo, os taxistas vão inviabilizar a circulação dos lisboetas para protestar em nome de uma reivindicação impossível: a proibição da Uber e do Cabify – porque, efectivamente, é essa a consequência da implementação das suas reclamações. Isto é, travar a inovação, o progresso e o funcionamento do mercado, exigindo ao Estado a perpetuação artificial de um monopólio. É uma posição, a todos os níveis, indefensável – alguns taxistas já o entenderam e, em conformidade, passaram a trabalhar com a Uber. E, terceiro, por ser indefensável, a ausência de argumentos que legitimem a sua posição negocial encaminhou o debate para ameaças de violência. Os episódios de agressões a motoristas da Uber repetem-se, há membros do governo com segurança reforçada, a manifestação de hoje arranca acompanhada de risco de distúrbios. Este comportamento, para além de ser socialmente inaceitável, deteriora a imagem dos taxistas perante todas as partes envolvidas no processo – desde o governo até à opinião pública. E, forçosamente, prejudica-os.
4. Tem sido relativamente fácil para o PS acordar com PCP e BE os apoios políticos para reversões de medidas e reformas do governo PSD/CDS. Durante quase um ano, foi isso a que o país assistiu na educação, nos transportes, na legislação laboral, nas opções económicas e fiscais. Agora, quando está na mesa uma reforma no sector dos transportes, esse acordo quebra-se, com o assumir de posições inconciliáveis entre os socialistas e os comunistas. Ora, caso o PCP force a apreciação parlamentar do decreto-lei, a regulação da Uber só será realidade se existir apoio parlamentar à direita. Eis o retrato do que a geringonça tem de pior: a incapacidade de modernizar e reformar o país, governando apenas para a preservação dos vários status quo. Serve para andar para trás, e não para a frente.
5. Adivinha-se para hoje o caos no trânsito lisboeta. Artérias entupidas, acessos cortados, buzinadelas, ruído, tensão. Numa cidade transformada em estaleiro, com obras em toda a parte e a toda a hora. Numa capital europeia cujo metropolitano circula com intervalos até 15 minutos e para o qual comprar um cartão válido para uma viagem pode demorar mais de uma hora. É admirável que Fernando Medina surja como favorito incontestado para ganhar a Câmara Municipal de Lisboa, nas autárquicas do próximo ano, depois de ter conseguido infernizar a vida dos lisboetas. É, claramente, por demérito dos adversários – os partidos da direita, em Lisboa, mal existem na oposição camarária e não são capazes de se entender para apresentar uma candidatura vencedora. Quando perderem, só se poderão queixar de si próprios.