António Costa anunciou-nos um CEO para a Saúde e considerou isso “a reforma não só fundamental, mas “imprescindível” que faltava para que “continuássemos a melhorar o SNS”.

E o País comunicacional rejubilou. Íamos ter um CEO, à moda das grandes multinacionais, que com uma varinha mágica iria, logo na segunda-feira seguinte, resolver todos os problemas do SNS. A grande reforma estrutural do SNS estava feita. Aliás, mesmo uma revolução.

Mas na verdade o que temos é apenas um diretor geral que, acompanhando o ministro nas boas palavras e intenções, é afinal apenas o remendeiro do possível (nem os seus próprios estatutos conseguiu fazer aprovar pelo Ministério das Finanças – retaliação da sua frase de entrada ““quero a saúde a mandar mais que as finanças”? ) de um SNS cada vez mais degradado e cujos problemas estruturais se mantêm todos, e que só sobrevive porque metade das pessoas usa o sistema privado pagando seguros de saúde ou descontando para a ADSE.

O SNS assenta desde o seu início em dois problemas estruturais cada vez mais evidentes: ser o seu financiamento 100% dependente do Orçamento de Estado/Ministério das Finanças e ser um modelo de Administração Pública.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

  • Financiamento 100% dependente do Orçamento de Estado/Ministério das Finanças

Sendo o financiamento 100% dependente de um OE, num país cujo PIB pouco cresce e com uma dívida pública elevada, não existe forma de acorrer quer ao investimento, quer à despesa corrente do SNS, quando as necessidades deste crescem exponencialmente com o aumento do número de pessoas idosas (é na terceira e quarta idade que mais se utilizam os recursos do SNS), as novas doenças, os caríssimos medicamentos inovadores, as novas tecnologias de ponta de diagnóstico e tratamento.

Por isso o ministro das Finanças, preocupado e com razão com um Portugal de contas certas, controla, com mão de ferro, através do Administração Central dos Serviços de Saúde, ACSS, toda a despesa do SNS e esta tem que ser por si autorizada. Nos últimos sete anos, aquando da aprovação do Orçamento de Estado, assistimos à rábula do Primeiro Ministro a anunciar “o maior investimento de sempre no SNS” e depois verificamos que, via cativações e baixa capacidade de execução, foi afinal “o menor investimento de sempre”

  • Ser um modelo de Administração Pública

No SNS não se gere, administra-se. Ou seja cumprem-se os procedimentos estabelecidos na lei, e por isso a presença de muitos Administradores Hospitalares de formação jurídica. Um sistema “tayloriano” onde tudo está previsto na lei. Sem qualquer flexibilidade ou capacidade de adaptação às realidades mutáveis. Houve um médico que se reformou? Só pode ser substituído quando se realizar um Concurso Nacional (ocorrem habitualmente 2 x por ano) e se houver quem o concurso concorra a esse lugar. Podem os horários dos médicos (e outros profissionais) adaptarem-se ao interesse destes e dos utentes? Não, têm que seguir o estabelecido na Lei (40 hs por semana, dois períodos por dia, máximo de duas horas de intervalo entre os dois). Sugiro que se leia esta entrevista de Dr. Artur Vaz que foi quem geriu o Hospital Beatriz Angelo (Loures), um dos quatro hospitais em PPP e cujo fim todos lamentam, quando assistimos ao atual descalabro.

Mas pode uma unidade pública do SNS ser gerida pelo Estado da mesma forma que o modo privado?

Luís Filipe Pereira, um gestor de topo, ministro da Saúde de Durão Barroso, tentou isso criando os Hospitais SA. Luís Filipe Pereira assumiu-se como verdadeiro CEO e comandante chefe, só que, com a sua saída e perdendo-se o seu comando, é o próprio Artur Vaz que explica: “a experiência dos Hospitais S.A., antes do modelo EPE, revelou o pior que havia a revelar – sem regulação, viam-se os maiores descalabros e hospitais a contratar pessoas por balúrdios.”

A diferença é que numa unidade de gestão privada existe um acionista que tem o seu dinheiro, e sua imagem, investido e se preocupa como que se passa na Unidade, quer com a qualidade do serviço, quer com a eficiência; na gestão pública esse alguém não existe e os serviços funcionam por inércia, assentes no amiguismo e até na corrupção.

Acresce que aquilo que o sistema pede aos quadros da Administração é antes de mais que não haja ondas, que não haja contestação pública. Quer dos utentes quer dos profissionais. Assim a Administração Pública assenta por um lado no comando e controlo segundo os regulamentos, e por outro na complacência.

Até nas Unidades de Saúde Familiares (USFs) de Modelo B, que assentavam no lema “USFs centradas nos utentes”, onde os profissionais ganham o dobro dos colegas com listas de utentes iguais aos do regime geral (nas USFs de Modelo A e Centros de Saúde tradicionais), passado o tempo dos revolucionários que as implementaram, hoje assiste-se como resultado da sua autonomia e perante a total passividade da Administração, a “USFs centradas nos profissionais” onde se reclamam os benefícios remuneratórios do Modelo B mas se querem apenas os deveres do regime geral. Ou menos. Enquanto no regime geral os médicos fazem 40 horas, em dois turnos assistenciais por dia, na maioria dos Modelos B, apesar de receberam por 44 horas, fazem entre 35 e 38 horas, e, em muito sítio apenas em dois dias da semana se tem dois períodos assistenciais. Isto confirmado em sucessivas auditorias pedidas pelo Ministério da Saúde. Numa delas, após despacho do então secretário da Saúde, dr. Fernando Araújo, identificando o problema e pedindo nova aprovação e validação de horários, na ARSLVT apurou-se que em 70% dos casos os Diretores Executivos se abstiveram de validarem ou não. Não se pronunciaram faltando aquilo que é um dos primeiros e mais elementares deveres das chefias da Administração Pública: aprovar/validar horários

E como a Administração foi complacente a solução encontrada em 2019 foi: rever a lei e até ser revista não haver mais modelos B.

Passados quase quatro anos o atual ministro comprometeu-se, por despacho, em rever a lei até 30 de Junho; entretanto, por critérios de oportunidade política, já passaram umas tantas USFs a modelo B e o Primeiro Ministro já veio prometer, recentemente, a generalização do Modelo B a todas unidades de cuidados de saúde primários até ao fim deste ano (mas promessas do Primeiro Ministro já sabemos o que valem)

Este exemplo ilustra a deficiência do modelo de Administração mas também os resultados da autonomia gestionária num modelo público (que tanto está na moda reclamar.)

Sem assumir, enfrentar e resolver estes dois problemas estruturais do SNS, este continuará no seu declínio, sobrevivendo à custa de triturar um ministro em cada dois anos; pois é mais fácil mudar um ministro do que fazer as mudanças que se impõem.

O Governo do PS de António Costa certamente não o fará e o resultado da sua boca cheia de juras pelo SNS é o recurso cada vez maior dos portugueses ao florescente Sistema Privado. Em vez de repensar o financiamento do SNS e preferir a gestão privada contratualizada pelo Estado de forma esclarecida QARE visando, qualidade, acessibilidade, resultados e eficiência, das Unidades da rede SNS (como o foram os Hospitais em Pareceria Público Privada, o seriam as USFs de Modelo C e o é, com enorme eficiência, qualidade e acessibilidade, o sector convencionado dos Meios Complementares de Diagnóstico e Tratamento) prefere deixar deslizar para uma crescente Privatização da Saúde assente em Grupos Económicos, Seguros de Saúde e ADSE.

Num País pequeno e com poucos recursos financeiros e humanos estamos a cada vez mais a sustentar dois sistemas em duplicado, deixando cada vez mais desprotegidos os que menos podem e os mais de 65 anos a quem os seguros de saúde já não assistem.

Um milhão e oitocentos mil utentes sem Médico de Família no SNS e sem alternativas ou apoios, quando no País existem Médicos de Família suficientes, demonstra bem o que acima se escreve.