Caiu sobre o regaço da nossa vida o irmos passar a ter um novo governo nestes dias de grande inquietação mundial. Talvez isto seja uma boa, embora em grandes aspetos indesejada, oportunidade para refletir, na linha de pessoas muito mais capazes do que eu, acerca de que governo, independentemente do seu hino partidário, seria o mais apropriado para nós. Para todos nós que nos reconhecemos, de uma forma ou de outra, como portugueses e portugueses que desejam viver no real e não na ilusão.

A minha identificação, patente logo sob uma foto distorcida do meu rosto, revela que sou um teólogo católico. É certo. E é enquanto tal que escreverei estas palavras; isto é, enquanto pessoa que, felizmente, está pessoal e profissionalmente aberta a toda a realidade e não apenas a uma parte dela. Não sou um teólogo poliédrico nem caleidoscópico, nem nada dessas coisas que estão na, e criam, moda; sou apenas um simples teólogo – e um que não faz poesia.

Se não fosse, lá está, um teólogo, e se me pudesse inspirar livremente num famoso texto de humor de Jonathan Lynn e Antony Jay, até talvez pudesse dizer, com grande assertividade, que os votantes: no BE, julgam que governam o país; no L, sonham que os seus parceiros afectivos governassem o país; no PS, sabem que governam de facto o país; no PAN, gostariam que os seus animais de estimação governassem o país; no PCP, aspiram a ser governados por outro país; na IL, pensam viver noutro país; no PSD, querem governar o país; no Chega, pensam que deviam governar o país. Mas, sendo teólogo, não irei tão longe a nível de tal assertividade, pois o levar a sério as dúvidas dos demais deve pautar, metodologicamente, o meu teologizar.

Estas diferenças de perspetiva, ditas deste ou de outro modo, marcariam, indelevelmente, o que poderia ser sustentado a respeito do que poderia ser aqueloutro governo. Reconheço-o plenamente. No entanto reafirmo o que já afirmei: irei tentar especular – talvez a sonhar com os olhos do coração bem despertos por tantos pensadores que já me são congénitos – sobre tal assunto independentemente da inclinação partidária de quem quer que seja. E fazê-lo, procurando afastar-me da numerologia moral e da reprodução do presente no importantíssimo “Compêndio da Doutrina Social da Igreja” – o qual, convém recordar para os mais atentos e habituados a ouvirem “sim” sem terem feito qualquer questão (Camus), não é um documento do Magistério da Igreja.

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Não sei se são os membros integrantes de um governo que constituem este, não obstante sei que, para que um tal governo esteja vigilante à realidade, eles precisam de ser uma transparência da genuína identidade e dos verdadeiros desígnios do conjunto da população (João Crisóstomo). Precisam, pois, de ser os garantes, na sua área de competência, de que nos é comunicada a realidade, uma vez que é nela que vivemos. Garantes, portanto, de uma nossa liberdade que não permite que sejamos reduzidos a uma mera mercadoria no meio de contentores anónimos e instintivos. Nisto, nós, que nos vemos diante deles sem termos escolhido para tais cargos, não podemos ser sujeitos passivos, antes intervenientes na emancipação de todos os nossos determinismos (Sayers). Aqueles que, por exemplo, nos fariam derrubar uma árvore de uma espécie em vias de extinção para, sobre ela, fazermos um discurso acerca da ecologia.

Se isso não suceder; se nos tratarem, e aceitarmos que nos tratem, como escravos, obscurecendo o que de mais valioso e jubiloso há em nós – a vida, a liberdade, o amor –, acabaremos por obscurecer a raiz da nossa existência. Não apenas aquela que se encontra nas poeiras das estrelas, reduzindo-nos a uma mera espécie zoológica, mas no Filão de Ouro que une todas elas e a todas elas faz mover (Claudel, Dante). Nada, pois, de se comprometer tal Filão, nem o que, graças a Ele, de mais humano há em cada um de nós.

O respeito pela tensão entre o “bem pessoal” e o “bem comum”, não pode ser um absoluto para nenhum governo, mas este também não se pode eximir de levá-la em consideração. Caso contrário, estará a impedir que uma das expressões mais firmes da nossa dignidade seja alcançada no seio de uma democracia que deve ser, e não pode não ser, uma prosopocracia (Tolkien). Isto é, nunca um governo deve arrancar de nós o que, para nós, é um meio imprescindível de humanização no contexto da nossa aguda consciência de inviolabilidade e de liberdade, seja face aos nossos bens, seja, mais importante ainda, face a nós mesmos (Green).

Se estiver atento à realidade, e não aos sonhos quiméricos de sermos e termos o que nunca teremos nem seremos, um tal governo reconhecerá que não pode existir atento ao real enquanto houver, ou por ele for promovida, a miséria em qualquer das suas formas. Aquela miséria compressora que impede o ser humano de aceder à sua humanidade e a pessoa à sua pessoalidade (Péguy). Aquela miséria estiradora que, assim e em última análise, o impedirá de co(m)-guiar, com cada um de nós, a nossa nação, e a nós que com ela nos preocupamos, para a realidade provinda da Realidade. Uma realidade que tal anotada incapacidade revelará ser desconhecida por esse governo, porquanto ignorante, precisamente, do sentido do humano pessoal.

Será que, por exemplo, o presente governo é constituído por pessoas em que a liberdade já está a realizar-se e, melhor ainda, a consumar-se? Por quem, em vez de nos projetar mundinhos ilusórios (e ainda maiores quimeras de que tais mundinhos poderiam ser geríveis), opta pelo mundo genuíno e substancial em que existimos? E nós; preocupamo-nos com isso? Talvez o “não” não seja a resposta mais desajustada a tais questões. É pena. E é-o, dado que, desse modo, talvez estejamos a como que suicidar-nos no nada, para, depois, passarmos o resto das nossas vidas a lamentarmo-nos por o termos feito (Endo). Por outras palavras: é pena, pois nunca as suas políticas deixarão de nos considerar como “objetos”, impedindo-nos de encontrar a Presença do Real em nós e em qualquer franja da realidade.

Nada, nunca, por favor, de nos materializarem, nem de obstaculizarem, em nós, a libertação do que em nós há de menos autêntico. Uma libertação, especificamente espiritual e arraigada em valores e hábitos consistentes, à qual, por sinal, o nosso governo – sim, nosso; ele é nosso, mas nós nunca somos dele – deve servir (Chesterton). Claro que isto, para tal governo, não é seguro, nem fácil, nem sequer isento de custos de distintas naturezas. Contudo, se ele reconhecer isso, talvez possa admitir que não há, nem pode existir, qualquer alternativa à realidade, onde, e só onde, se pode respirar aquela Realidade que, sendo a única fonte da alegria autêntica, é um reverdecer de vida.

Fora disto, estamos num caldeirão de ilusões a cozinhar ideias utópicas, emoções selvagens e convicções erradas, levadas em procissão num qualquer ostensório de demagogia, que nos reduz – que “me” reduz – ao que é meramente vantajoso no, e para o, processo político e económico (Lewis). Se assim for, estaremos ante um governo que só nos ajudará se, e só se, lhe provarmos que não necessitamos dessa ajuda. Alienados, quer pelo explorarmos, quer pelo sermos explorados; vendidos e trocados como escravos do vinho sagrado (do dinheiro ou da revolução) resultante de sermos pisados nos lagares da produtividade, dificilmente seremos elementos justamente significativos da realidade. Em consequência, nunca nos depararemos, nem com o real, nem com o Real – no Qual devemos viver previamente a n’Ele crermos (Bernanos).

Seria, sabemo-lo bem, muito mais fácil para o nosso governo se ele se agarrasse às falsas certezas que pode elaborar acerca da existência, de nós, da nossa nação e, mais perigosamente ainda, de si mesmo. Todavia, isso levá-lo-ia a ser devorado pela sua própria fantasia. Pior ainda: isso conduzi-lo-ia, inapelavelmente, a ser devorado pela sua recusa em deixar que o contacto connosco, por um lado, configurasse a sua identidade e operatividade; e, por outro lado, passasse a ser parte da, também sua, sempre mais vasta realidade (Alain de Lille). Aquela realidade que está revestida da única beleza que (não cativando, mas libertando) é um genuíno novo saber acerca de como pensar e agir – algo que, de qualquer lado o queiramos ver, é sempre um segredo amoroso. Não, por conseguinte, um daqueles segredos que são ouvidos às “portas” e inventados pelas “línguas”, antes um que nos acolhe, respeita e promove.