Continuamos desesperados, sem saber quando é que a pandemia acaba. Do desconfinamento do Natal até à esperança politicamente exagerada na vacina (ninguém nos diz quando é que teremos a população vacinada), algo se passou no comportamento dos Portugueses que fez com que os números de infetados por Covid-19 disparassem sem tréguas. As camas de cuidados intensivos que se instalaram até ao verão passado para fazer face a uma nova vaga já não chegam. Também precisamos de mais profissionais de saúde para trabalhar nos hospitais de campanha. Durante a primeira fase da pandemia, comparei esta pandemia com uma situação de guerra, dando como exemplo a experiência que muitos Portugueses viveram em África, antes e durante a descolonização. Esta nova fase, inesperada e terrífica, só se pode comparar a uma catástrofe. Não imagino uma fase pior que esta, mas acontecendo será um caos ingerível.

Neste momento já não temos como certo recorrer aos hospitais para tratar os nossos descendentes ou ascendentes, ou nós próprios, o que demonstra que estamos perto do descontrolo. Infelizmente, os cenários de guerra que antecipei estão a acontecer, confirmados pelos relatos que médicos e outros profissionais de saúde, a quem presto aqui uma homenagem, me vão transmitindo.

Mas existem todos os outros doentes, os não Covid, que não estão a ser assistidos e que resultarão inevitavelmente em casos mais difíceis de tratar e em mais mortes não provocadas pelo vírus. É por isso imprescindível achatar e abrandar a curva de infeção e, por muito que possamos apontar culpados, temos de evitar ser um deles. Como tal, confinemos a sério.

A situação dramática desta pandemia é não conseguirmos manter a assistência à saúde dos cidadãos que não estejam infetados. Há já quem pergunte se a infeção por Covid tem preferência relativamente a outras doenças, como o cancro e a insuficiência cardíaca, bastante mais mortais do que a pandemia.

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Interessante é verificar que esta crise tem trazido para o debate político a discussão ideológica da saúde. As presidenciais foram aproveitadas por alguns partidos e por alguns candidatos para se autopromoverem. Talvez por termos um candidato ganhador à partida, as campanhas assentaram numa discussão não própria de eleições presidenciais, mais ideológica e não conectada às responsabilidades de um Presidente da República. O tópico da saúde foi inevitável, indo ao ponto de se pôr o dogma do SNS em causa, enquanto serviço, mas não enquanto sistema. Chamo-lhe dogma, porque em todos os setores partidários existe a ideia de que o SNS é eficaz e essencial enquanto prestador e, sem saber ao certo quais os custos que suportamos no sector público, colocam-se em causa preços exigidos por prestadores privados. Acredito que cada prestador saiba os seus custos, mas não existe uma clareza a nível de sistema. A universalidade do acesso à saúde não é só garantida por prestadores de saúde, vulgo hospitais, clínicas e centros de saúde, mas sim por um sistema que conheça todo o potencial do país, que saiba motivar a procura e a oferta, de forma a haver equilíbrio e equidade para todos.

Nos Estados Unidos da América a discussão ideológica da universalidade do acesso e do financiamento à saúde começou a ser intensamente discutida na presidência Clinton, assumiu o seu auge com o chamado Obama Care e continuou com a presidência Trump. Nesse país é o próprio sistema que está em discussão, pois, como sabemos, os EUA estão longe de ter garantido o acesso universal e um sistema nacional de saúde. Uma discussão similar observa-se hoje em Portugal noutra dimensão, a do Serviço Nacional de Saúde. Estabeleço aqui um paralelismo: os cidadãos que se identificam mais com a esquerda tendem a valorizar o sistema de saúde e os seus prestadores no lado público, enquanto os que se identificam à direita quanto muito concordam com a universalidade de um sistema, mas valorizam mais a capacidade de escolha e a prestação privada. A conclusão que se tira de vários artigos que li e da minha experiência no setor, é que muitas decisões sobre o sistema de saúde são tomadas ideologicamente, independentemente de uma análise pragmática sobre afetação de recursos e resultados clínicos dos prestadores públicos e privados. Há um aproveitamento ideológico seguindo a perceção que os cidadãos vão tendo sobre os sistemas de saúde.

O que as presidenciais trouxeram para o debate foi a verificação que se continua a ter uma ideia dogmática da saúde, mas perante a discussão, verificamos que temos de medir mais os recursos e os resultados dos procedimentos efetuados pelos prestadores, sejam públicos ou privados, de forma a avaliarmos o que queremos para o presente e para o futuro. Por outras palavras, temos de reconhecer que a saúde é um setor económico com regras e ética próprias a serem cumpridas e fiscalizadas, mas temos de determinar que recursos deverão ser afetados, qual o verdadeiro papel e vocação do Estado neste campo e, finalmente, qual a responsabilidade do setor empresarial, quando sabemos que a produtividade é proporcional à saúde de uma população e, como tal, o investimento na saúde é primordial.