Em minha casa, há uma minúscula frigideira verde a ganhar pó na gaveta. Nunca a utilizei, mas sei exatamente a sua função – ela frita um (e apenas um) ovo de cada vez.
A par de vários objetos mais importantes para a minha subsistência do que a dita frigideira, reside em minha casa um contrabaixo. Mora encostado a um conjunto de quadros e desenhos, na sala, e, contrariamente à frigideira verde, é utilizado muitas vezes. Mas, quando pensei sobre o assunto, foi-me difícil chegar a uma resposta à pergunta: a música serve para quê?
Viajamos o mundo à procura de esculturas milenares e arte contemporânea.
Transformamos a vida de pintores em biografias e nunca se venderam tantos bilhetes para museus. No entanto, se nos perguntarem para que serve a arte, é fácil corar e mudar de assunto, mesmo sabendo que, por algum motivo, a arte é importante. Como poderemos promover a apreciação e a criação de arte nas nossas vidas, empresas e sociedade, se uma frigideira que só frita um ovo de cada vez tem um papel mais definido que uma obra de Picasso?
Continuei a estudar música, mesmo não sabendo bem porquê. E, hoje, o meu trabalho é a interseção entre várias formas de expressão artísticas: na mais recente série documental que produzimos, as linhas do surf misturam-se com as frequências do Cante Alentejano, do Flamenco, ou do Gnawa marroquino. Embora respondamos a questões como “de onde vem”, “quem pratica” ou mesmo “porque existe esta forma de arte”, nunca encontrei o “para que serve a arte”, nas minhas viagens. E, quando não sabemos a função de qualquer coisa, podemos ser levados a assumir que estamos perante algo com menos valor. Por outras palavras: será que a minha existência é inferior à de uma frigideira? Felizmente, houve quem procurasse melhor:
Quando se discutir mais um corte ao Orçamento de Estado no apoio à arte e à cultura, utilizando o argumento de que não têm um propósito, podemos utilizar a lógica de Alain de Botton (um filósofo inglês da atualidade) para explicarmos que, afinal, a arte é importante e até sabemos para quê.
A arte pode muito bem ser aquilo que nos levanta da cama:
O mundo em que caminhamos é um lugar duro. Chegam até nós desastres de todos os cantos do planeta, e tudo aquilo que temos perto de nós está sempre pronto para desaparecer. A arte é tantas vezes um lugar onde podemos estar em contacto com o que é belo e distanciar-nos do sofrimento. Viver num mundo sem arte é viver num mundo sem esperança de que as coisas passem, melhorem e se tornem bonitas novamente. “Que difícil é a vida dos homens”, escreveu Sophia de Mello Breyner: “Eles não têm asas para voar por cima das coisas más”. As nossas asas são a arte.
Se um dia sentirmos que o mundo está a deixar de fazer sentido, talvez valha a pena procurar os fones, e dar uma volta.
A arte normaliza a nossa solidão:
O mundo que realmente habitamos – a nossa cabeça – é um lugar solitário. Por mais próximas que sejam as pessoas que nos rodeiam, os sentimentos que experienciamos ressoam apenas dentro das paredes do nosso corpo. Num contexto em que, através das redes sociais, temos tanto acesso ao 1% mais feliz da vida dos outros, essa solidão pode parecer um problema exclusivamente, humilhantemente nosso. Na expressão artística, criadores que terão mostrado vidas bem sucedida ao mundo deixam escorrer precisamente o sofrimento solitário nas suas obras. É esse sofrimento que normaliza o nosso. Se os vícios servem para nos alienarmos daquilo que sentimos como único, a arte está para nos dizer que, afinal, não estamos sozinhos.
Se um dia quisermos que os nossos filhos aprendam a conviver consigo próprios, um museu pode ter um papel tão determinante como um psicólogo.
A arte serve para mostrar aquilo que nos faz falta:
O surgimento de movimentos artísticos numa determinada sociedade pode muito bem ser o reflexo daquilo que essa sociedade mais desesperadamente necessita: a ideia de “peace and love” surgiu como um romper com os valores tradicionais de uma sociedade que se opunha à participação constante em conflitos armados, ao materialismo e consumismo que marcou o período do pós segunda guerra mundial. Se não quisermos pensar sobre coisas tão grandes: olhar para a fotografia do Atlântico gelado que orgulhosamente habita a sala de estar do consultor financeiro é entender que falta mar na vida de escritório. A arte é a nossa melhor balança.
Se um dia o Sr. Primeiro Ministro quiser entender aquilo que desejamos, leia a poesia que escrevem os jovens.
A arte serve para darmos valor à nossa vida.
Talvez tenha existido um momento em que, às seis da tarde, a noite chegasse e ficássemos apenas com aquilo que tínhamos à nossa volta. Hoje, os cartazes, as celebridades, os media e o metaverso roubam a nossa atenção da melhor e mais estudada forma que conseguem. Vêm para nos dizer que precisamos de algo brilhante, novo e caro. Só assim poderemos, finalmente, obter statos, sexo, milhares de amigos e a imensa glória das coisas extraordinárias. Não há nada de errado com subir montanhas mas a arte gosta mais de sussurrar a beleza das coisas mundanas. Mesmo que sejamos os mais bem sucedidos empreendedores ou os mais famosos astros do cinema, vamos passar a maior parte do nosso tempo longe das passadeiras vermelhas dos Oscars e perto dos urinóis de Duchamps, ou dos melões de Monet.
Se um dia o mundo fizer muito barulho, vamos dar uma volta no parque, com a máquina ou um lápis na mão.
A arte serve para vender… os valores que realmente importam.
Estamos a tornar-nos em vendedores cada vez melhores. Todos os dias, a técnica é utilizada ao serviço de pacotes de internet com mais megas, carros que até tostas mistas fazem e telemóveis com muitas, muitas câmaras. A arte é a plataforma que vende os nossos desejos, dores, e, principalmente, motivações mais profundas. O artista utiliza a técnica ao serviço da propaganda, também, mas do seu melhor eu. Uma sociedade sem arte é uma sociedade sem uma voz que vai gritando aquilo que nos deveria interessar a todos.
Se um dia a sua marca quiser dizer a verdade, fale com um artista e não lhe diga quase nada.