Imediatamente a seguir ao 25 de Abril, como seria de esperar, começaram a pipocar partidos por todo o lado. Mas deu-se um facto surpreendente, tendo em conta que o país tinha acabado de sair de uma longa ditadura de direita: logo em agosto, a SEDES divulgou um estudo onde, para tentar pôr alguma ordem na confusão, classificava 48 partidos e concluía que 29 se situavam na esquerda e na extrema-esquerda e 19 iam do centro à extrema-direita. Ou seja: espantosamente, quase 40% dos partidos analisados escassos meses depois do fim do Estado Novo apresentavam-se como não sendo de esquerda.

Perante isto, os revolucionários começaram imediatamente a aplicar a “tática do salame”. A expressão é do político húngaro Matyos Rakosi, que, logo depois da Segunda Guerra Mundial, explicou como os partidos comunistas eliminavam, um a um, os poderes que os enfrentavam, cortando o “salame” de forma gradual, começando à direita e avançando depois para a esquerda. Seguindo essa receita infalível, em Portugal os partidos à direita foram sendo progressivamente ilegalizados. Muito rapidamente, o CDS de Diogo Freitas do Amaral sentiu que a faca estava próxima. Procurando ajuda, implorou por uma adesão urgentíssima à União Europeia das Democracias Cristãs. Acompanhado por Adelino Amaro da Costa, correu para Paris e apelou: “Acham que podemos ser admitidos na UEDC já nesta reunião? Para nós, é absolutamente indispensável obter uma proteção internacional, pois está em marcha um processo de salamização que já destruiu três partidos, e nós seremos a próxima vítima”. Na avaliação posterior do próprio Freitas do Amaral, só a presença de uma delegação da UEDC no primeiro congresso do partido, no Palácio de Cristal, no Porto, impediu que uma tentativa de invasão acabasse com o esmagamento do CDS.

A diabolização de qualquer político que não seja de esquerda não foi apenas uma caraterística passageira do processo revolucionário — na verdade, transformou-se numa marca do regime. Poucos anos depois, Francisco Sá Carneiro também foi repetidamente descrito como um radical que pretendia o regresso da ditadura, especialmente quando se atreveu a apresentar o general Soares Carneiro como candidato presidencial contra o sacrossanto (e também general) Ramalho Eanes.

Quando Mário Soares se candidatou nas presidenciais de 1986, pegou na faca sem contemplações. Depois de Diogo Freitas do Amaral ter ficado à frente na primeira volta, o fundador do PS precisava de fazer tudo para ganhar na votação final. Anos mais tarde, Mário Soares reconheceu tranquilamente ter usado um método implacável. Retrospetivamente, reconheceu: “Faço a justiça ao professor Freitas do Amaral de pensar que acredita sinceramente na democracia”. Mas isso não o impediu de seguir a tática de sempre: “É simples: num confronto esquerda-direita, como o que ocorria, era fácil enfatizar os perigos que correria o país, de regresso ao passado, se a direita ganhasse. Foi um apelo subliminar à memória histórica do país, que resultou em cheio. Talvez fosse um pouco injusto em relação, precisamente, a Freitas do Amaral — reconheço —, mas à la guerre comme à la guerre…”

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Pois é: à la guerre comme à la guerre… As guerras, naturalmente, continuaram na democracia portuguesa. Por isso, bem mais tarde, em 2010, colunistas respeitados em jornais respeitáveis apresentavam o CDS como “a nova extrema-direita”. O seu líder, Paulo Portas, era descrito como “um novo tipo de populista”, naturalmente, com “a agenda da extrema-direita”. Ele era, aliás, pior do que o pior fascista: “Por ser mais sofisticada e ‘liberal’, esta nova extrema-direita é mais perigosa”. Dois anos antes, uma tese de mestrado apresentada no ISCTE defendia que, “sob a direcção do líder Paulo Portas”, a estratégia eleitoral do CDS “se vai aproximar eficazmente aos novos partidos da extrema-direita pós-industrial europeia”. E nem valerá a pena lembrar que, em 2013, Pedro Passos Coelho, líder do PSD, era recebido repetidamente em eventos públicos com gritos de “fascismo nunca mais”.

Chegados a novembro de 2023, a “tática do salame” continua a ser utilizada pela esquerda com zelo e gozo. Na primeira entrevista como candidato a líder do PS, Pedro Nuno Santos proclamou que “o projeto do PSD mais Iniciativa Liberal já é suficientemente radical para nos preocupar sem a muleta do Chega”. Acrescentou, ominoso e soturno: “A IL tem um projeto radicalmente liberal. Eu diria que um eventual Governo do PSD com a IL seria um Governo mais à direita do que o de Passos Coelho. Passos Coelho, apesar de tudo, não dependeu da IL”.

A estratégia da esquerda segue há quase 50 anos um método repetidamente disciplinado: quando um líder da direita está no ativo, é um prócere do fascismo; quando um líder da direita deixa o ativo, passa a ser um exemplo de moderação. Hoje, Freitas do Amaral, que entretanto se tornou ministro do PS, é elogiado pela esquerda como um exemplo admirável do centrismo que faz falta ao país. Sá Carneiro, que morreu logo em 1980, é enaltecido como uma grande figura histórica. Paulo Portas, que se transformou num comentador televisivo, é estimado como um analista equilibrado. E, ouvindo Pedro Nuno Santos, percebemos agora que Pedro Passos Coelho, recolhido em casa, é um governante que, “apesar de tudo, não dependeu da IL”.

Já Luís Montenegro e Rui Rocha, que disputam eleições à frente do PSD e da IL, são políticos que tentam ocultar à nação a sua inescapável condição de fascistas à espera de marcharem sobre Roma ou de invadirem a Polónia.

Em certo sentido, eu percebo. Se a “tática do salame” tem resultado desde 1974, porque é que Pedro Nuno Santos havia de prescindir dela? Afinal, para a esquerda sempre foi muito fácil chegar ao poder: basta pegar na faca e cortar.

Nota: as conclusões do estudo da SEDES podem ser consultadas no livro “À Direita da Revolução”, de Riccardo Marchi; para mais detalhes, pode ler o primeiro volume das memórias políticas de Diogo Freitas do Amaral e o segundo volume do livro-entrevista a Mário Soares de Maria João Avillez.