Choca-nos a todos que alguém que entre num supermercado e furte comida por não ter meios para se alimentar seja penalizado. Choca-nos a todos que um jovem que faz uma pequena asneira seja tratado lado a lado com criminosos graves e, com isso, seja levado a agravar o seu comportamento futuro. Mais, todos entendemos que o sistema de justiça, cujos recursos são escassos, se deve focar no combate à criminalidade mais grave e não prejudicar desempenhos com casos menores.
Tudo isto está bem na teoria.
Nas últimas semanas, um rapaz ficou famoso e conhecido como o “rei dos catalisadores”, condenado mais de dez vezes por furto simples. Repetidamente foi detido, aguardando sempre o julgamento em liberdade, uma liberdade que rentabilizava para ir praticando mais furtos. O caso, noticiado até à exaustão, descredibiliza a justiça, desmoraliza os que a ela dedicam a sua vida profissional e alimenta em simultâneo um sentimento de insegurança na população e um sentimento de impunidade em potenciais infractores.
Este triste episódio não se deve à displicência da polícia e, menos ainda, dos magistrados. Apesar de o individuo ter uma atividade criminosa contínua, a lei determina que cada ato seja aferido autonomamente. Haveria que perceber que este indivíduo não furtou um catalisador, mas que se dedica a este furto como atividade de rotina, pelo que a prisão preventiva seria plenamente fundamentada pela imperiosa necessidade de fazer cessar a atividade criminosa.
Olhando para um segundo exemplo, em São Francisco, na Califórnia, a cadeia de farmácias/lojas de conveniência Walgreens anunciou o fecho de 22 lojas, todas na cidade. Dezenas de pequenos comércios seguem o mesmo destino: fecham. E não é por falta de clientes. Assoberbada com o combate à criminalidade mais grave e com a cegueira ideológica de que o pequeno furto é um problema social e não criminal, o legislador descriminalizou os furtos até 950 dólares. O resultado está caracterizado em inúmeros artigos da imprensa de referência como o Wall Street Journal e em dezenas de vídeos disponíveis nas redes sociais. Os ladrões já não se preocupam sequer em esconder o seu ato. Entram nas lojas, agarram o que querem e saem. Fartos de conflitualidade, de contratar seguranças e de pagar prémios de seguro, as lojas fecham e, com isso, agravam a degradação social dos bairros mais pobres.
Terceiro exemplo: Rudy Giuliani, que recentemente ficou famoso pelos disparates que disse e fez foi, nos anos 90, um relevante e reformador “mayor” de Nova Iorque. Sob o lema “A cleaner city is a safer city“, desenvolveu uma guerra sem quartel aos grafitis. Para os combater, criou equipas municipais de pintura (hoje, uma prática comum em muitos municípios portugueses) e criou uma linha telefónica para os munícipes participarem os novos grafitis, aos quais as referidas equipas municipais acorriam com rapidez.
Objectivamente, um grafito só por si não gera insegurança. Alguns são feios, causam dano em propriedade, mas não mais. Mesmo quando a Torre de Belém foi grafitada, dias depois, estava limpa. O ocorrido irritou, mas passou. O problema é que uma cidade com grafitis comunica ao utilizador uma sensação de insegurança, quer esta corresponda ou não a nível de criminalidade elevada e, com isso, degrada a qualidade de vida. É de elementar bom senso: todos nos sentimos mais seguros numa rua limpa do que numa outra com as paredes cobertas de grafitis. Ou numa carruagem da CP com paredes e janelas pintadas. Por muito que possam dizer que grafitis são arte…
E há algum motivo pelo qual todos tenhamos de pagar equipas de limpeza que consomem recursos que deveriam estar onde fazem falta? A CP noticiou recentemente que “A limpeza dos grafítis custou à CP nada menos de 3,4 milhões entre 2008 e 2019, despesa que permitiria à empresa comprar um comboio novo” (JN).
Nos três exemplos, se olharmos um comportamento apenas, ele não tem grande importância. Roubar um catalisador deve ser punido, claro, mas não é o fim do mundo. Um pequeno furto num supermercado pode até sinalizar uma situação de carência alimentar e, portanto, é mais merecedora de apoio do que de cadeia. Fazer dois sarrabiscos numa parede não justifica que o jovem seja açoitado na praça pública. Por isso, o legislador tende a tratar tais comportamentos com benevolência. Uma benevolência que se mostra ingénua, à medida que as consequências aparecem. São os pequenos crimes que se tornam atividade de rotina, é o encerramento do comércio que não suporta ser roubado todos os dias, é a degradação das cidades, cobertas de “obras de arte”.
É certo que o problema tem mais complexidade. Por exemplo, a criminalidade na Califórnia, que é crescente e gravíssima, funda-se em políticas – erradas – muito mais vastas do que a descriminalização do pequeno furto.
A segurança e a justiça são áreas que a esmagadora maioria da população, de todo o espectro político, atribui ao Estado. As forças do centro político têm de dar resposta a esta necessidade. Não o fazendo, abrem caminho a quem o faça.
Nota editorial: Os pontos de vistas expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.