1 A vida vai indo, sem ir. Um pé ancorado no mundo aflito dos écrans, o outro, no verde da nova morada, o campo agora para ficar. Residência fixa. E quanto se escreveu, se compôs, se “poetizou”, se pintou, se cantou sobre a vida no campo que não é igual a mais nenhuma outra? Conduzida quase só pelas venturas ou desventuras das colheitas, á mercê do capricho das estações e à rotina implacável do calendário, só as pequenas ocorrências – que podem subitamente ser grandes – lhe enfeitam os dias.

Com gestos que julgávamos esquecidos, ritmos e hábitos que já não eram nossos, sabores e cheiros redescobertos, lugares onde de repente se volta – a barragem, a mata, os charcos, as pequenas colinas – vai-se indo, sem ir.

Apesar porém do vagar – ou talvez por isso mesmo – a atenção redobra, os sentidos alertam-se. Para tudo se olha como se as coisas agora estivessem em relevo porque tudo passou subitamente a ter importância. Até essas pequenas ocorrências sem importância: um vulto que passa ao longe e não reconheço, os cães ao anoitecer, a Celina que deixou pão, o cheiro da terra húmida, o desolamento de tantas camélias a jazer no chão, o viço de uma primavera precoce, o sino da igreja aqui perto, a Foz do Arelho que “fechou”, interditando areias e mar… Ah e essa grande, grande, convocatória da qual é preciso fazer caso, para a valsa já a ser dançada na natureza pelos seus febris protagonistas (e haverá mais febril do que o viço da natureza na primavera?)

Como responder porém hoje a essa chamada se o tempo é de sobressalto e a aflição repudia a valsa? Talvez atendendo simplesmente aos sinais do recomeço, recomeça-se sempre. A primavera que irrompe após o inverno, a maré que enche depois de vazar, o dia que desperta da noite. Pequenos sinais com importância.

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2 A criatividade e a diversidade das iniciativas que de todos os lados e em vários domínios nos chegam, via net, exibem uma capacidade de resposta e uma frescura tão ágil que merecem aplauso. Exibem a renúncia mais absoluta à rendição, o que não é senão um fortisssimo ponto de partida. A seguir, a imaginação e a vontade farão o resto ( e têm feito). Eis o que, numa situação tão a-normal, face à pior das ameaças que é a do desemprego e no pleno breu do desconhecido, nos surge como coisa notabilíssima. A escolha tornou-se hoje para quem esta em casa um real embaraço, e não já um fictício provérbio. Ainda mal “isto” começara e já João Lourenço disponibilizava online, algumas recentes peças do belo arquivo do seu Teatro Aberto (que fundou e dirige.) Imediatamente se seguiram concertos, conferências, livros, conversas, lições, ofícios, blogues novos, novas comunidades. E surgiu o indispensável: redes de entreajuda, mil ações solidárias, oportunos auxílios, bons conselhos, amparos variados, gestos doces. E ideias, generosas ideias, como essa de cantar nos prédios ou de aplaudir médicos e enfermeiros em coro audível. Pequenos sinais com muita importância.

Há quem os ache piegas e se des-comova. A natureza humana é vária, há de tudo como na botica. Não nos impressionemos. Aqui onde estou não há prédios altos, nem andares, nem se canta. As cantorias são outras, mas talvez também cheguem ao céu.

3 No campo há vizinhos. Sempre cultivei os vizinhos, sempre me encantou o estatuto tão próprio que têm. Constituem uma divisão humana à parte, têm uma “assinatura”, cabem numa categoria. Um vizinho não é irmão, nem parente, nem conhecido, nem colega, nem amigo (mesmo quando também o é) é “um” vizinho. Para nossa felicidade, no oeste onde estou, eles existem em bom número, pertinência e brilho. Agora não nos vimos – nem ao longe – mas sabemo-nos geograficamente “cá”, nas mesmas paragens e saber isso resulta numa espécie de conforto. Longe da vista, juntos na provação e na troca de estados de alma. Estreitam-se laços, reforçam-se certezas. Ainda que sem jantarmos em conjunto, trocarmos flores ou mimos ou discutirmos acesamente na mesma sala. O quê? Política. (naturalmente).

4 Por muito que pense não me ocorre nome nenhum de encenadores ou realizadores (Bergman, talvez?) capazes de igualar na ficção, a realidade interpretada há dias pelo Papa Francisco, na Praça de S. Pedro. Momento irrepetível e por isso único, terá ficado gravado em corações e memórias. De crentes e não crentes, fieis de outros credos, gente de todos os lugares.

Que outra coisa dizer da solidão de uma veste branca avançando devagar pelo asfalto molhado? Do tão significante vazio da praça, do despojado silêncio que a envolvia, da escolhida sobriedade de duas imagens, uma tenda e alguns vasos de barro onde ardiam tochas ? Do andar fatigado do Papa, soçobrando a custódia que naquele preciso instante era o peso do mundo ás suas costas? Da água redentora que caía, da tonalidade do anoitecer com Roma entrevista ao longe… Nunca o silêncio foi tão eloquente, nem a beleza tão desamparada E na minha vida que vai longa, tenho a firme certeza de que raríssimas vezes terei assistido a um momento global com tão profundo, desolado significado.

Miranda Calha, entre Raquel Abecassis e João Marques de Almeida

5 Poucos horas depois desta foto ter sido tirada Júlio Miranda Calha sofria um AVC do qual não se viria a recompor, falecendo dias depois num hospital de Lisboa. Vimo-nos no dia 10 de Março último – há tão pouco tempo afinal – em cima do palco da Culturgest, em iniciativa em boa hora promovida pelo Movimento Europa e Liberdade (MEL) que a foto reporta. Cabia-me moderar um painel (“A Europa e o Mundo – a Nova Configuração e os Efeitos em Portugal”) e Miranda Calha era um dos intervenientes, ao lado de Joaquim Aguiar, Raquel Abecassis e João Marques de Almeida. Encontrei-o igual a si mesmo – o que é sempre um bom sinal –, isto é, delicado, sóbrio, atento. Delicadíssimo e com um gosto tão inesperado quanto indisfarçável por trajar bem. Lá estava ele naquele último dia, em cima do palco, lenço de seda vermelha a condizer com gravata também de seda e também vermelha. Um homem de boas maneiras e firmeza de ideias que atravessou a vida como ele era: com descrição e sem desistências. Não lhe ocorriam. Devoto pessoal e político de Jaime Gama – e com que razão – convidou-me um dia para uma pasteleria no Chiado, “tínhamos de falar”: Miranda Calha queria criar um núcleo de apoio forte à por si muito desejada candidatura de Gama à Presidência da Republica e queria gente para a empreitada…

Possuía um interesse sério pelas questões de geo-estrastégia, era um incansável estudioso delas e um “expert” em assuntos de Defesa, muitas vezes chamado para intervir em fóruns nacionais ou internacionais, presidindo até a alguns deles. Entre 1974 e 1975 batalhou politicamente tanto e tanto bem em nome da liberdade e do PS em Portalegre de onde natural — e onde tinha linda casa – que o Partido Socialista lá viria a registar a maior votação obtida pelos socialistas em todo o país nas primeiras eleições. Um feito. Foi cabeça de lista pelo seu distrito natal durante quase quarenta anos, com lugar fixo no Parlamento numa longevidade política e parlamentar abruptamente cortada – por ele próprio: discordava de mente e alma com uma geringonça que (lhe) surgia sem aviso prévio nem boas companhias políticas, à frente do caminho do PS.

Foi uma morte que as circunstâncias ditaram que fosse semi-ignorada. Na hora trágica que se vive o exclusivo dos focos vai para outras mortes. Tive pena. O mínimo que posso fazer é lembrá-lo e dizer-lhe que vou sentir a falta da sua firmeza política (e das suas boas maneiras).

5 Epílogo: 1 de Abril, dia das mentiras. Oxalá fosse.

PS: Como cidadã do Estado português continuo à espera que o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) me dê explicações para a abjecta brutalidade cometida, em horário de serviço e no aeroporto de Lisboa (!) por três membros do SEF sobre um ucraniano. A brutalidade – tão demencialmente canalha que levou ao seu assassínio – foi praticada por indivíduos ao serviço do Estado a que pertenço. Mereço, merecemos, o país merece explicações. A trágica pandemia não pode nem disfarçá-las, nem atrasá-las, nem omiti-las. Exigimo-las. Até onde se pode descer no horror indizível para ser possível assassinar um estrangeiro no aeroporto da capital? Pior: só dias depois se soube – e se não fosse a TVI não se saberia. E mesmo assim só depois disso, houve demissões. Não chegam. E o resto?