Na última semana assistiu-se à crescente generalização no espaço público da ideia de que as pessoas não aderiram às últimas medidas restritivas decididas e implementadas pelo Governo. “A generalidade dos portugueses”, a “maioria dos portugueses” não o fez, disseram-nos decisores e meios de comunicação social, suportando-se em dados de mobilidade comparados ao primeiro dever de recolhimento obrigatório decretado em Março de 2020. Ora, creio que não é correcto afirmar que a maioria não cumpre – a maioria fá-lo e fá-lo há muitos meses com enorme sacrifício e com sentido de responsabilidade individual e colectivo – como não é correcto suportar essas afirmações em dados de mobilidade comparada em períodos com medidas distintas (desde logo as escolas abertas) e com conhecimento e protecção disponível face a propagação do vírus distintos (por exemplo, a utilização de máscaras e a adequação de alguns espaços públicos).

Mas, não sendo a maioria incumpridora, como vem sendo afirmado, é hoje evidente que existem neste segundo período de dever de recolhimento obrigatório mais barreiras à adesão voluntária às medidas e mais comportamentos inadequados involuntários por parte da população, o que faz com que mais pessoas possam incumprir as restrições decretadas, colocando-se a si e a outras/os em maior risco de contágio, somando mais casos (e com eles mais risco) a um sistema já tragicamente pressionado.

Creio existirem cinco condições distintas, agora, face a Março de 2020, que nos ajudam a compreender esta maior dificuldade na adesão e que, se forem tidas em consideração na acção, na decisão de medidas de Saúde Pública e na comunicação, podem surtir efeito imediato e garantir mais condições para o seu cumprimento e sucesso.

1 Vulnerabilidade emocional e psicológica da população: Portugal era, pré-pandemia, um dos países da Europa que apresentava maior prevalência de dificuldades e problemas de saúde psicológica, sobretudo porque aos ainda baixos níveis de educação, de competências sócio-emocionais e de literacia em saúde (psicológica), acresciam os elevados índices de precariedade, pobreza e exclusão, de isolamento e solidão e as significativas iniquidades e inacessibilidades a serviços de Psicologia e Saúde Mental. Com excepção da literacia, estaremos hoje pior em todos estes aspectos. Quem já tinha problemas de saúde psicológica (ansiedade, depressão, stress, …) estará hoje numa situação mais exigente e agudizaram-se as situações de vulnerabilidade emocional decorrentes desta circunstância desafiante, de imprevisibilidade e de incerteza, do aumento do isolamento, da solidão, da precariedade e desemprego, da pobreza e da exclusão.

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Tendo crescido o apoio psicológico disponível (linha de aconselhamento psicológico do SNS24 e escolas, por exemplo), esse crescimento foi claramente insuficiente face ao incremento e exigência das necessidades. Na verdade, foi praticamente inexistente onde poderia ser mais determinante – nos cuidados de saúde primários. Sendo Portugal um país que investiu importantes recursos na formação de 24 mil psicólogas/os, não nos podemos conformar que, 10 meses volvidos da mais grave crise vivida nas últimas largas décadas em Portugal, continuem apenas a existir 250 psicólogas/os para todas as unidades em Portugal continental, cerca de 2,5 por cada 100 mil habitantes.

Todas/os compreendemos que as questões emocionais afectam o nosso comportamento pela forma como condicionam e determinam as nossas tomadas de decisão e a nossa capacidade de auto-regulação. Por isso, as autoridades, em todo o tempo da pandemia, mantiveram sempre restrições específicas a cerimónias fúnebres e a eventos desportivos como o futebol (apenas para dar dois exemplos) em que resta claro que as questões emocionais distintas associadas a estes dois momentos poderiam condicionar a adopção de comportamentos de protecção. Urge, portanto, reforçar o apoio psicológico e social disponibilizado à população, particularmente a quem vive com um problema psicológico ou tem maiores vulnerabilidades. Urge, também, que as medidas decididas e a decidir tenham em consideração o estado emocional e psicológico da população.

2 Fadiga da Pandemia. A Organização Mundial de Saúde alertou, já em Outubro passado, que 60% da população europeia sentia fadiga pandémica. Todas/os o compreendemos, estamos há demasiados meses hipervigilantes, coartados da nossa espontaneidade (e até liberdade), cognitivamente e emocionalmente activados. Estamos cansados e, cansados que estamos, cometemos mais erros: tal como cometemos mais erros no nosso trabalho, estudo ou cuidado aos nossos filhos e pais quando estamos mais cansados, também relativamente à pandemia, cometemos agora mais erros nos comportamentos que adoptamos. Devemos aceitar esta situação e agir em conformidade, apoiando a população na adesão às medidas. Simplificando-as e facilitando o seu cumprimento – por exemplo, permitindo que as pessoas mantenham a possibilidade de andar ou correr (a actividade física é fundamental à manutenção do bem-estar neste momento e esta saída de casa para muitas pessoas é o último reduto de tempo e espaço só para si), mas encerrando espaços propícios a maiores concentrações e sinalizando (com fitas, por exemplo) a impossibilidade de permanência em bancos de jardim. e outro mobiliário urbano, algo que não aconteceu no primeiro fim de semana e dias sucessivos deste período. Estimulando o cumprimento de distâncias físicas, por exemplo organizando, com sinalética, filas de espera, algo que foi fundamental já no Domingo passado a percepção de segurança relatada pela maioria das/os eleitoras/es face aos locais de voto.

3 Medo e Percepção de Risco. O medo, que apesar do peso da palavra, tem o papel positivo de nos alertar, inquietar e activar para comportamentos de protecção, teve uma função importante no comportamento da população em Março de 2020. Explicou, em parte, o porquê do isolamento a que assistimos ter até antecedido a imposição de restrições do primeiro estado de emergência. Numa pandemia, o medo oscila (não diminui apenas, como pareceu assumir-se) e nas últimas semanas (não dias), responsáveis pelos trágicos números com os quais hoje estamos confrontados, ele não cumpriu esse papel da mesma forma. Tendeu a cumprir, no entanto e ainda que não com a mesma intensidade, nos últimos dias ao sabor da gravidade da situação e de uma cada vez maior proximidade da doença e dos seus impactos nos núcleos familiares. Dias em que, fechassem ou não as Escolas, veríamos pais e famílias a “fechá-las aos seus filhos e educandas/os”, regressando a tensão associada ao “não controlo” da situação (antes pelo desconhecimento, agora pela possibilidade de ruptura de resposta do sistema de Saúde).

Medo que se relaciona com a percepção de risco (de contágio) que, porque subjectivamente definida, é tão fulcral numa pandemia que vive de comportamentos. Tal como quanto mais testarmos, mais identificamos o vírus (e podemos actuar), quanto mais (e com maior qualidade) avaliarmos a percepção de risco da população, numa base diária e com amostras representativas da população e de grupos populacionais específicos, melhor poderemos prever o seu comportamento e comunicar e decidir de acordo com a percepção de risco existente. Hoje, mais que olhar para trás, importa definitivamente que comecemos a usar, diariamente, este importantíssimo indicador de Saúde Pública na comunicação e na decisão, conforme se utilizam os números e previsões de infecções e da capacidade existente no sistema. Mais tarde, quando vencermos este grave momento, haveremos de poder perceber o que correu mal e lá encontraremos os dados do barómetro Covid-19 da Escola Nacional de Saúde Pública, que na última reunião do Infarmed foram disponibilizados e que indicam que as duas semanas dos últimos largos meses com menor percepção de risco de contágio da população foram, exactamente, as duas semanas do período do Natal e passagem de ano – semanas que pelas medidas adoptadas e pela maior mobilidade, ao invés de menor risco efectivo, tinham naturalmente maior risco efectivo. Ora, nem a comunicação feita permitiu aumentar a percepção de risco (e com ela levar a que mais pessoas adoptassem comportamentos de protecção), nem as medidas o tiveram em consideração, num claro ignorar do Governo deste importantíssimo indicador que ajudará a explicar porque é que as pessoas naquele período ter-se-ão protegido menos e protegido menos os outros, conforme a situação epidemiológica e as medidas implementadas implicariam. A percepção de risco é um indicador central na gestão da pandemia mas, incrivelmente, é a agulha no palheiro desta história triste. A avaliação da percepção de risco, grupo populacional a grupo populacional, tem definitivamente de ser de qualidade e ter uma base permanente (como a testagem), acompanhando taco a taco a decisão e a comunicação de medidas.

4 Habituação e comunicação negativa. Embora não seja ilimitada, enquanto seres humanos temos uma enorme capacidade de adaptação ao contexto e à informação, sendo possível habituarmo-nos ao extremo, vendo “bondade em agressores” (Síndrome de Estocolmo) ou naturalizando imagens e números de infectados e mortes que, embora em escalada, não sobressaltam por vezes ao nível do que sobressaltou o primeiro caso ou a primeira morte em Portugal. Rapidamente generalizamos excepções e naturalizamos fenómenos. Tendo isto presente, é ainda mais difícil compreender como ao arrepio de toda a evidência científica que suporta que a comunicação negativa (culpabilizante – “não cumpriram o contrato de confiança” – e ilegitimadora do cansaço) não promove a adesão ao comportamento esperado, avançamos de uma comunicação (de decisores, sociedade e media) positiva, que enalteceu o esforço e o comportamento da população, que nos mostrava imagens de ruas desertas e reforçava o comportamento adequado com mobilizadores sociais envolvidos (artistas, jogadores de futebol, entre outros) para uma comunicação que nos apresenta como incumpridores, irresponsáveis, que sistematicamente mostra imagens de comportamentos potencialmente desadequados (jardins ou espaços públicos), sem o devido cuidado em separar quem está a ter um comportamento adequado (andar ou correr com as devidas precauções) de quem possa não estar a ter, tratando a parte pelo todo, generalizando e tornando norma o comportamento não adequado. Mais, hoje não vemos os mobilizadores a apoiarem o esforço comunicacional e vemos ainda mais insuficiente personalização da comunicação para grupos específicos da população (por exemplo, os adolescentes e jovens adultos) e grupos com vulnerabilidades específicas. É tão urgente quanto possível, que nos lembremos que somos os mesmos cidadãos de Março, com mais vulnerabilidades é certo, mas os mesmos, e que regressemos a uma comunicação pela positiva, validando as dificuldades e o esforço, salientando e voltando a tornar norma os comportamentos adequados, envolvendo mobilizadores sociais e personalizando as mensagens, utilizando todos os meios ao nosso dispor para conseguirmos chegar a cada pessoa, em cada momento, com a mensagem precisa que a ajude e estimule na adopção dos comportamentos pró-saúde e pró-sociais, hoje tão necessários.

5 Crise de confiança. Raras vezes na história vivemos um momento em que a polarização na sociedade e na política fosse tão significativa e impactante e em que o obscurantismo e a pós-verdade pusessem em causa a democrática diferença entre os factos e as opiniões. À boleia das autoestradas de partilha de informação e de confirmação de estereótipos, opiniões e crenças que são as redes sociais hoje, sem mediadores, é possível que opiniões questionem factos, instando a desconfianças, descrenças e até teorias conspirativas pouco úteis a respostas concertadas a grandes desafios societais. É-o assim com a crise climática, com o racismo ou com as migrações. É-o assim com uma pandemia. Um pouco por tudo o que atrás referi a confiança nos decisores, nos profissionais e até nos jornalistas tem decrescido com os meses de pandemia, abrindo mais espaço à multiplicação da desconfiança e da dúvida que, necessariamente, contribui para que hoje olhemos mais para fora de nós, buscando culpa nos outros (nas suas decisões, posições ou comportamentos) do que nos centrando em nós, confiando e fazendo o que está sob nosso controlo (além de comportamentos de protecção, o apoio a outras pessoas ou o cuidado na partilha de informação factual sobre a pandemia). Será decisivo nas próximas semanas voltarmos a um quadro de maior confiança, sendo, para tal, necessária mais clareza e honestidade na comunicação, reiterando que a dúvida e o erro são parte da decisão, até porque é tomada por seres humanos, também há muito expostos a uma pressão constante, mas tendo sempre presente acções (e apresentando-as) de melhoria contínua, actuando no sentido da prevenção de erros futuros.

Cinco factores condicionantes dos processos de tomada de decisão e dos comportamentos, fundamentais para compreender o momento que vivemos. Cinco condições que, se permanentemente avaliadas e consideradas no desenho e comunicação de medidas, podem produzir efeitos desde já.

Precisamos de uma atitude mais responsiva perante as/os Portuguesas/es que contribua para o esforço que tantos profissionais da linha da frente fazem há meses e farão nas próximas (duríssimas) semanas que enfrentaremos, na esperança e com um propósito que também difere do primeiro isolamento de Março passado. Aí lutávamos para “achatar” a curva de um vírus e de uma doença que desconhecíamos, cuja vacina era uma miragem e com o intuito exclusivo de ganharmos tempo para nos prepararmos para segundas e terceiras ondas. Hoje, o propósito é lutarmos para resistir ao enorme desafio que enfrentamos, com a expectativa de nas próximas semanas chegarmos a um momento de crescente imunização da população, particularmente dos grupos mais vulneráveis com o processo de vacinação em curso (que soma à imunização “natural” que cresceu e crescerá significativamente). De chegarmos a um tempo em que, paulatinamente, recuperemos algum controlo, levantaremos algumas restrições e possamos estar fisicamente mais próximos uns dos outros, algo tão fundamental ao nosso bem-estar. A um tempo em que, também pela recuperação das pessoas, recuperaremos o país, o bem-estar e a coesão social.

Num contributo que julgo importante para o conseguirmos, respondo à pergunta que alguns colunistas e intervenientes no espaço público têm feito: sim, existe conhecimento da ciência psicológica e das ciências comportamentais e sociais disponível. Sim, existem profissionais desta área empenhados, disponíveis e mobilizados. Porque não chamá-los até junto de si, senhor/a decisor/a?