As medidas anunciadas pelo Governo, no sentido de descomprimir os sobrelotados Estabelecimentos Prisionais (EP), para impedir uma pandemia entre os reclusos, são bem-vindas e absolutamente necessárias. As prisões são um barril de pólvora em matéria de contágios. É evidente.
A sociedade civil, em geral, compreendeu essas medidas. Abrangem o perdão para penas até dois anos de prisão, um regime especial de indulto, a antecipação da liberdade condicional e saídas administrativas. Ou seja, cerca de 1200 reclusos, num universo de cerca de 13 mil, poderão ser contemplados.
Mas, atenção, pode a iniciativa ter mérito, mas vamos ver como se operacionaliza. Porque as medidas de abrandamento de penas, por razões humanitárias, poderão depender, na sua maioria, de relatórios sociais elaborados pelos Técnicos Superiores de Reinserção Social (TSRS), nomeadamente no caso dos indultos, saídas precárias e vigilância eletrónica. Isto complica tudo.
Se em situações normais, os juízes desesperam a aguardar um relatório social, para conhecer as condições sócio-económicas do arguido ou do condenado, para, depois, decidir se o prende ou o liberta, retardando, inclusive, a saída da prisão de alguns condenados, não sei o que acontecerá quando, de repente, ao mesmo tempo, cair na Direcção Geral de Reinserção e Serviços Prisionais (DGRSP) o pedido para que sejam elaborados centenas de relatórios sociais para cada recluso abrangido pela medida humanitária. Vai ser quase impossível! Mas, vamos aguardar o decreto-lei do governo para perceber as orientações sobre esta matéria.
No caso dos indultos e das saídas precárias, ninguém sai em liberdade sem que seja elaborado um relatório social pelos TSRS. Por outro lado, ninguém vai para prisão domiciliária com pulseira eletrónica sem que antes um TSRS se desloque à residência do recluso para verificar as condições do imóvel e da família, e entregar, depois, o relatório ao juiz. Em seguida, cabe a um Técnico Profissional de Reinserção Social (TPRS) deslocar-se ao local para colocar os aparelhos de comunicação. Ora, estes TSRS e TPRS são muito poucos. Além de escassos, muitos encontram-se em casa em assistência à família. Além de que, quer num quer noutro caso, é necessária a realização de dois relatórios dos serviços prisionais e serviços de reinserção social; e depois a realização de um conselho técnico, com o Juiz do Tribunal de Execução de Penas (TEP), o diretor do EP, o chefe de guardas, o TSRSR e o adjunto para o tratamento prisional; e, finalmente, a emissão de parecer por parte do Juiz do TEP, ou, do Juiz do Tribunal, se for preventivo, que ouve o magistrado do Ministério Publico e que pode até dar parecer negativo. Ou seja, se o caminho for este nem em dois meses se consegue a libertação do recluso. E pode colocar na rua os TSRS, dia e noite, a fazerem relatórios, com deslocações em transportes públicos, porque não há viaturas, correndo o risco de contactar as famílias dos reclusos sem qualquer tipo de equipamento que os proteja da contaminação pela covid-19. Isto seria inumano.
Por outro lado, a se a opção legislativa passar pela colocação em liberdade de todos os casos em que se pode prescindir de relatórios sociais, temos outro problema: há o perigo de colocar pessoas em liberdade sem a necessário retaguarda familiar. Há indivíduos sem-abrigo, completamente abandonados, precisamente porque saíram da prisão sem se conhecer as suas condições no exterior. É necessário ponderar tudo isto.
Se no sistema existem cerca de cinco guardas prisionais para um recluso (o ideal seriam três), a média de TSRS é muito menor. Serão mais de 150 reclusos para cada TSRS integrados em equipas adstritas aos EP. É impossível a um TSRS acompanhar a reinserção de todos os indivíduos à sua responsabilidade. Por isso, os juízes são muito relutantes em conceder a liberdade condicional porque sabem que não há acompanhamento na ressocialização. Na verdade, saem poucas pessoas em liberdade condicional e no caso das penas até um ano, nem sequer saem. O que significa que são as penas pequenas, até três anos, as que mais cumprem a reclusão até ao fim. Também não há mais gente em prisão domiciliária porque, na realidade, também não há TSRS para supervisionar um plano de reinserção. E as pulseiras são caras. Depois, há muito tempo que os juízes do TEP deixaram de acreditar na eficácia da DGRSP.
Em suma, em Portugal a reinserção social de reclusos pura e simplesmente não existe. É pena. Nos últimos anos nunca o poder político, e também a DGRSP, se preocupou com a reinserção das pessoas, enchendo os profissionais com burocracia e orientações pouco praticas que em nada contribuem para combater a reincidência. Nunca se investiu neste sector da Justiça. Aliás, a Justiça sempre foi o parente pobre do Orçamento de Estado
Lamenta-se que a classe política não esteja sensibilizada. Não dá votos, claro. Mas, garanto, que seria a melhor medida para se trabalhar, a sério, na prevenção do crime.
É necessário contratar mais TSRS, e por TSRS incluo todos, os que trabalham no interior e fora dos EP. E é necessário, por parte da DGRSP, um plano de trabalho mais técnico, mais científico e mais humanista, sobretudo com os seus funcionários.
Nesta matéria não se entende a posição do PSD. Defendendo que confinados nas prisões os reclusos ficam mais protegidos é não ter a mínima noção do que se passa no interior de um EP. Rui Rio está muito mal assessorado em matéria de reinserção e serviço prisionais, digo eu. Recordo que foi no tempo do governo de Passos Coelho que se pensou um Plano Nacional de Reabilitação e Reinserção, excepcional nos seus princípios, o qual só não foi completamente executado devido aos constrangimentos económico-financeiros que então o País atravessava. Um Plano, obviamente, humanista. A ideia subjacente era transformar as prisões em centros de reabilitação e reinserção, abandonando o modelo de mera reclusão, ou de armazenamento de pessoas, como ainda permanece.
Portugal tem sido condenado internacionalmente pelo excesso de presos que tem. É o País da Europa com mais elevados tempos médios de permanência na prisão — 36,4 meses, contra uma média europeia de 14,9 meses.
A postura do PSD pareceu-me muito pouco humanista e despropositada. Mas, a iniciativa do governo também tem riscos de não poder ser aplicada. Fazer um relatório social não é simples. Ou antes, não deveria. Infelizmente, por vezes, por assoberbamento de trabalho, os TSRS pegam no telefone para falar com o presidente da Junta de Freguesia da zona de residência do recluso, que diz conhecer a família, é boa gente, e tal… depois é feito o relatório sem se sair da secretária.
A média de reincidência é muito elevada. Estima-se que entre os homens possa rondar os 50%… Ninguém a quer estudar a sério porque envergonharia os que pensam a inexistente reinserção.
Também ainda ninguém percebeu quais foram os efeitos práticos, além dos económicos, da fusão entre a antiga Direcção-Geral de Reinserção e a antiga Direcção Geral dos Serviços Prisionais, que originou a actual DGRSP. E custa a aceitar que a Lei Tutelar de Menores seja da competência de quem gere as prisões. É preciso pensar em tudo isto…