Na poesia medieval portuguesa nem os poetas achavam que eram medievais nem ninguém achava que era português. Dela valoriza-se por ordem em primeiro lugar as cantigas de amigo; em segundo as de amor; em terceiro, as de escárnio; e só por último as de maldizer. Dá-se mais importância às cantigas que sugerem ocupações elevadas; e menos às que se parecem com aquilo que são. As de amigo sugerem lamentos de mulheres novas sequestradas por mulheres velhas; as de amor sugerem a leitura de poemas sofisticados; as de escárnio sugerem comentários de alcance social; mas as de maldizer são difamatórias.
Difamar uma pessoa é atribuir a essa pessoa acções que poderá não ter realizado; ou exprimir sobre ela opiniões que a ofendam; sendo que será possível a terceiros identificá-la. Ao difamar estamos a falar a sério, isto é, queremos difamar quem difamamos. A difamação tem sempre um período de validade limitado: como depende de a pessoa difamada ser reconhecida por terceiros, só tem efeito enquanto houver quem se ofenda, e quem reconheça essa ofensa. Nas cantigas de maldizer fala-se dos hábitos íntimos e das acções de pessoas particulares, identificadas pelos nomes. No século XIII pouca gente sabia ler, e os leitores que viviam perto conheciam-se uns aos outros. Actualmente, porém, mal conseguimos saber quem eram os antigos difamados. A violência das cantigas de maldizer já não tem um propósito óbvio; os palavrões frequentes deixam indiferentes os maiores de treze anos.
Acresce que alguns poetas capazes de destilar quantidades substanciais de acinte bisbilhoteiro eram também capazes de compor versos de aspecto devocional. Afonso X, Rei de Castela (1221-1252), bisneto dos Imperadores Romanos do Oriente e do Ocidente e avô do rei D. Dinis, é o melhor exemplo. Mandou coligir uma longa série de mais de quatrocentas cantigas musicadas em honra de Nossa Senhora (algumas das quais compôs), escritas em galaico-português, língua a que em Portugal se chama hoje português, muitas delas maravilhosas; mas também escreveu algumas das cantigas de maldizer mais violentas que foram conservadas.
Numa dessas cantigas descreve uma velha muito gorda chamada Sancha Anes. O poema tem três estrofes: na primeira ela vai a cavalo; na segunda a cavalo num burro; e na terceira numa mula. Divertido com a equitação, Afonso benze-se e conclui que um fardo de falha daquele tamanho só pode ter sido carregado num palheiro gigante. Na última estrofe exclama com admiração selvagem: “Ai velha fududancua, / que me semelhades ora mostea!” Afonso está a comparar Sancha na mula a um carro carregado de palha, a uma mosteia. A palavra “fududancua,” talvez inventada por si, justapõe a referência a um rabo enorme e suposições sexuais relativas a esse rabo. Reconhecemos ainda o facto, mas não sabemos bem quem está a ser insultado: o maldizer foi-se. Esse é o mistério da poesia: mesmo quando começa como difamação acaba como ficção.