Medo do poder e medo da responsabilidade levam à demagogia e à constante justificação do poder que se tem. Constituem o maior erro político. Ocorrem quando a «vaidade», a «ânsia de poder», a «ambição rastejante» substituem a «coragem», a «audácia», o «domínio de si», a «capacidade e força para aplicar o bem que se toma das mãos do povo». O «ímpeto de agir» e o «poder com responsabilidade» são preenchidos pelo mero «êxito» pessoal. Por isso, tem razão Bismarck ao afirmar que «fazer política com princípios é como entrar numa densa floresta transportando uma longa vara entre os dentes» (ou, «atravessar o Sena a nado, com um sabre entre os dentes»). «Princípios políticos», e não «princípios éticos ou religiosos», entenda-se. Nenhum princípio político prescreve por si a essência da política. Tal como a medicina, a política é uma «arte» («arte de governar»), não uma «ciência». Uma arte de equilíbrio e acerto, em palpação contínua (como as antenas de alguns insectos). Pertence, portanto, à esfera do relativo. Assim escreve Max Scheler, a propósito da figura do «herói», ao qual faz equivaler o «estadista», o político ético.
Uma coisa é o político de princípios e da mera convicção, outra coisa é o estadista. Enquanto aquele não vive sem um manual de instruções, seguindo fixamente os «programas do partido», o estadista eleva-se acima dos partidos, «cavalga» sobre todos eles, jamais desejando «montar» algum. Ciente daquilo a que os gregos chamavam kairós, «adapta-se a cada dia» e «a cada hora», mostrando estar à altura nas situações mais dolorosas (guerras, revoluções, calamidades), situações “peculiares” e “únicas”: «o homem oportuno para a hora oportuna». Ciente também de que o passado é a memória das nossas próprias acções, o político estadista eleva activamente o Estado a um nível de desenvolvimento sucessivamente superior, sentindo-se, ante si mesmo, co-responsável pelo conjunto do Estado e pelos seus cidadãos. Não despreza as massas, ao contrário dos «aduladores», mas mantém perante elas o hábito da distância. Mostra-lhes confiança, vivendo profundamente enraizado no povo e no seu espírito. E defende vigorosamente o princípio do primado da política sobre a economia bem como a independência da alta política perante os interesses das grandes associações económicas. Enfim, o político estadista é um «líder», ou seja, uma «figura-valor», um «modelo».
Scheler replica uma célebre conferência proferida por Max Weber em 1919, intitulada «A política como vocação [profissão]». Nela, Weber traça a distinção entre «ética da convicção» e «ética da responsabilidade», o pano de fundo da argumentação de Scheler. A ideia nuclear é a de que a política, no seu «forte e lento verrumar em dura madeira», faz-se com a cabeça, mas não apenas com a cabeça. Precisa de paixão e mesura, convicção e responsabilidade. Estas duas éticas traduzem modalidades políticas, a um tempo opostas, e a outro tempo complementares. Mas nenhuma delas pode subsistir sem a outra. Corporizam dilemas éticos inerentes a toda a carreira política.
A ética da convicção é o plano estrito da consciência (refúgio privilegiado e reivindicado por todos os políticos do nosso tempo). A intenção é a única coisa que conta. As ideias políticas justificam-se por si mesmas. Não há qualquer ligação entre a ideia que se tem para o mundo e a recepção que o mesmo mundo pode oferecer a essa ideia. Quando as consequências da aplicação das suas ideias programáticas são más, o agente político não se considera responsável por elas. Pode mesmo transferir essa responsabilidade para outros (o mundo, a estupidez dos homens, a vontade de Deus, etc.). Por outras palavras, nunca somos culpáveis, desde que a intenção formada pela própria ideia se presuma correta. A ocorrência do mal explica-se sempre em função de fatores externos ou hostis, nunca devido à nossa impreparação ou inaptidão («não sou eu, é a maldade…»). Julgamo-nos absolutamente convictos, sem que nos interroguemos sequer acerca de consequências previsíveis e, ainda por cima, sacudindo para outrem ou forças impessoais a nossa própria responsabilidade. Promovendo-se, portanto, uma auto-desresponsabilização política.
Submersa nestes enleios, oriundos de uma ética de absolutos (intransigência nos princípios), a acção política mostra ausência de maturidade para estar à altura das realidades da vida. A sociedade e a vida dos povos não são um jogo onde se imponha demonstrar a razão que se presume ter, como num debate teórico. Urge saber pensar politicamente. Sentir a responsabilidade pelas consequências e agir de acordo com uma ética da responsabilidade.
Vividas pelas pessoas «adultas» e «maduras», as duas éticas são complementos, não opostos. Vemos, por um lado, que nem o bem resulta apenas do bom, nem o mal provém apenas do mau, e que, por outro lado, as consequências produzidas pelos nossos actos e pelas nossas intenções não seguem necessariamente um padrão linear, não podendo, pois, todas elas, ser desejadas, intencionadas, antecipáveis.
As reflexões dos dois pensadores continuam a ser, ainda hoje, plenamente válidas. Partilhamos uma época de «desencanto» pelo presente e de «angústia» pelo futuro. Ambos se insurgem contra o «prudencialismo» (uma desfiguração do significado de prudência), a «petrificação mecânica» da «racionalização» e o controlo do Estado. E ambos sabem bem do que falam, presenciaram a violência da guerra e o nascimento do totalitarismo.
Em Portugal abundam os exemplos que patenteiam, ao nível do insuportável, a desordem e precariedade do mundo político. É precioso que a questão da ética esteja a ser introduzida nos debates sobre a natureza da política corrente, mas é também imperioso passar do diagnóstico ao prognóstico. Uma ética de absolutos, da mera convicção, sem o compromisso dos «valores», transforma-se facilmente num relativismo dogmático e intolerante – como estamos a ver. Ela até pode ser ocasionalmente válida nos contactos pessoais, mas é completamente inapropriada ao exercício do poder político. Não basta ter “bons princípios políticos”, se a eles não corresponder a assunção da responsabilidade que a atestação efectiva, com a realidade da vida, força e pressupõe. Não é por acaso que as longas permanências no poder são raras. Portugal tem sido vítima de uma espécie de comodismo ético, uma ética vazia de conteúdo. «Pessoas que não sentem realmente o que assumem, mas se inflamam com sensações românticas». O moralismo, o autoconvencimento, o dogmatismo moral é incompatível com a capacidade de corrigir, emendar e rectificar, isto é, com a maturidade da responsabilidade.