Não cessa de crescer a esfera de ambiguidade em que vivem os nossos governantes. Lá vão conservando fixamente o poder, mas perdendo crescentemente autoridade. Este é talvez o principal problema político contemporâneo, a «falta de vontade», a ausência de um uso crítico da racionalidade, termo pelo qual Nietzsche definia o niilismo, e que hoje parece inspirar completamente a relação da classe política com a sociedade. Sinal disso é o ceticismo social total face à política e afins, que pode ser aliás fortemente desgastante, inclusivamente no plano psicológico.

Nenhuma democracia sobrevive sem valores, especialmente em sociedades dominadas pelo confronto, em permanente conflito de interpretações, muitas vezes capturadas pela pluralidade irredutível dos elementos que a compõem. A nossa não é exceção. O primeiríssimo desses valores é justamente o da autoridade política. Em que consiste, pois, a autoridade política?

Foi Aristóteles, («o primeiro pensador do político, e até talvez o último»), quem pela primeira vez teorizou sobre o assunto. Averiguando os fundamentos do conhecimento político, o filósofo distingue entre “domínio” (kurios, também traduzível por “senhor”, “senhorio”), “poder” (krateia) e “autoridade” (arkhe). Cada um dos termos tem um significado próprio. Chama autoridade política justamente à capacidade para exercer o poder, à capacidade para se fazer respeitar devido a um estatuto primordial ou primacial. Perdida a autoridade, resta unicamente a relação autoritária (própria dos procedimentos despóticos).

Havendo autoridade, haverá poder e domínio. Quem apenas detém o poder não significa nem que detenha domínio nem que detenha autoridade. Traduzir o poder em domínio elevando-o à condição ‘espiritual’ de autoridade distingue uma relação positiva, não abusiva, dos governantes com a sociedade.

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E precisamente por isso, dizia o grande filósofo, há sempre uma pequena distância entre demagogia e tirania, originando-se a degradação e ruína das democracias. Este perigo aparece geralmente através das interferências demagógicas, da capacidade manipulatória do discurso (invocação de erros, mentiras, ilusões). Os demagogos provocam posições tão extremadas que transformam muito facilmente as democracias em regimes tirânicos. Uma das razões para a proliferação das tiranias em tempos remotos, lembra-nos Aristóteles, fora o acúmulo de cargos pelos mesmos indivíduos, provenientes especialmente das chefias militares. Utilizando o “discurso” e a “persuasão”, a demagogia tornou-se agora uma espécie de sucedâneo da violência eficaz na posse e perpetuação no poder.

Apesar de ter sido dito e pensado no século IV a. C., há muito mais tempo do que na semana passada, não é estranho aos nossos dias. É patente o esvaziamento do carácter moderado das nossas democracias (ditas “liberais”, que é na verdade uma redundância), conferindo-lhes um carácter mais radical. Aqui, os demagogos pululam, a vida é fácil.

Que podemos esperar? Outrora faziam-se revoluções. Historicamente, elas ocorreram quando não foram feitas as reformas que eram necessárias. O caso mais evidente talvez seja o da Revolução Francesa, como diz Tocqueville na sua obra derradeira, O Antigo Regime e a Revolução. No capítulo que intitulou «Como a Revolução saiu de si própria atendendo ao que a precede», afirma ter sido a progressiva degradação das elites e respetiva transformação em casta («classe privilegiada e fechada»), com o objetivo único de conservar proeminências sociais e privilégios, que realmente provocaram a Revolução («… depois de ter estado mil anos em pé, pôde ser derrubada no espaço de uma noite»).

Portugal também fez as suas revoluções. Aparentemente, nenhuma foi suficientemente ‘revolucionária’. Aplicam-se-nos as palavras de Platão: «Quando há luta pelo poder, os que saem vitoriosos apropriam-se dos cargos públicos completamente, de modo a não deixar réstia de poder por exercer para os vencidos e para os seus descendentes».

Por outras palavras, Portugal tem sido vítima do êxito dos seus vencedores. E continua a sê-lo, mesmo em democracia. Presumo que de tantas revoluções, teremos esgotado a própria ideia de revolução. Não havendo coragem para fazer certas reformas, estaremos condenados ao abuso do poder. Parece não haver limites. Ninguém é constrangido a fazer coisas que a lei não obriga nem a não fazer o que a lei permite. A moralidade não se decreta nem se invoca, pratica-se.

Uma sociedade desprezada pelos seus políticos é uma sociedade condenada ao abandono e ao conformismo; vivendo na ilusão de um ‘grande líder’ – a grande tentação do mau populismo. Talvez tenhamos os “vencedores” que merecemos, aqueles que o nosso cariz individualista-egoísta tem sido capaz de gerar, e grande responsável pela atomização das sociedades democráticas. Mas isso também significa que a autoridade política falhou, alimentando a desconfiança, o retraimento e os medos – que passam a governar a nossa imaginação. Excepto no caso das “elites”, para as quais está sempre «tudo bem». Como diz Tolstoi, todos os “felizes” se parecem uns com os outros.