Não querer tomar posição, não deixar registo que mais tarde possa ser inconveniente, surfar a tendência para evitar o trabalho de procurar argumentos, tornou-se a regra nas ditas redes sociais.
Em nome do politicamente correcto, que mais não é que a “verdade” ditada pela maioria, ao arrepio dos factos, muitas das vezes negando a evidência e abdicando da racionalidade, as pessoas vão sendo capturadas, abdicando da sua individualidade, do sentido crítico que dá cor e sabor ao debate, que alimenta o contraditório, que é o verdadeiro substracto da democracia.
Vivemos um tempo paradoxal, o posicionamento dito “moderno” mais não é que uma versão reeditada da alegoria das cavernas. Tal como Platão concebeu a metáfora das cavernas, também hoje se confunde a realidade com as suas sombras, as pessoas abdicam de ser para parecer.
Na alegoria, as pessoas habitantes da caverna, por nunca terem visto outra coisa, acreditam que as sombras projetadas são a única verdade, a própria realidade. Hoje, a caverna são as redes sem rostos, as sombras são os seus conteúdos e as pessoas acreditam que a verdade virtual é a única, por se recusarem a conhecer a realidade.
O debate gerado pela decisão tomada em 24 de Junho pelo Supremo Tribunal de Justiça Americano é paradigmático desta enorme confusão entre a realidade e as suas aparências.
O Acórdão do Supremo Tribunal dos Estaos Unidos da América veio dar interpretação diferente à primeira secção da 14ª (décima quarta) Emenda da Constituição Americana. Ao contrário do que é dito, repetido e recalcado nos média, e depois amplificado pelas redes, a decisão não implica a proibição do aborto em toda e qualquer circunstância, é uma mentira que nem que seja repetida à exaustão passará a ser verdade. O que resulta do novo Acórdão é a liberdade para cada Estado legislar sobre a matéria conforme os seus eleitores entenderem.
Sim, veio criar essa liberdade, liberdade que estava negada desde 1973.
Em 1973 O caso Roe contra Wade teve forte impacto no Direito Constitucional Americano. O Supremo Tribunal dos Estados Unidos entendeu que a liberdade individual consagrada na 14ª emenda abrangia o direito à mulher fazer aborto, pelo que nenhuma Lei poderia limitar esse direito. Decisão que vigorou atá ao passado dia 24 de Junho de 2022.
O novo entendimento do Supremo reconhece o direito à protecção constitucional dos nascituros, logo, pela mesma linha de raciocínio a dita “liberdade” para abortar choca com a “liberdade” para viver. Este foi o debate que o Tribunal veio colocar na agenda, debate que nunca deveria ter sido retirado, porque também não há direitos “grátis”, o que para uns é um direito, para outros significa a perda do maior de todos os direitos, o direito à vida.
A ligeireza com que algumas vozes, vindas das instituições mais respeitáveis, reagiram a esta decisão, diz muito da forma irresponsável como uma questão tão sensível é tratada.
Nancy Pelosi, sobre o acórdão, afirmou: “alcançou o mais negro e extremo objetivo de rasgar o direito das mulheres às suas próprias decisões reprodutivas”.
Considerar o aborto como um instrumento de decisão reprodutiva, colocando-o ao mesmo nível da pílula ou de qualquer outro método contraceptivo, é de uma frieza e falta de honestidade intelectual, que só pode resultar de dogmas ideológicos que tolhem a lógica e o bom-senso. Os métodos contraceptivos evitam o surgimento de uma nova vida, que ocorreria contra vontade dos progenitores; o aborto implica terminar com uma vida por vontade da progenitora.
Entre uma coisa e outra há um universo de diferenças. Querer confundi-las é pretender empurrar o debate para as tais “sombras da caverna”, onde a realidade se confunde com a sua sombra, mas a realidade é só uma, o aborto implica o sacrifício de uma vida.
Barak Obama também quis participar no coro do politicamente correcto e afirmou: “Hoje o Supremo Tribunal não só anulou quase 50 anos de precedente histórico, como também deixa a decisão mais pessoal entregue à boa vontade dos políticos e ideólogos, atacando a liberdade de milhões de americanos.” Não é a abordagem correcta, ninguém pretende interferir na soberania reprodutiva da mulher, mas o aborto atenta contra a vida de quem não se pode defender. Se não for protegido pela Lei, será protegido por quem?
A questão do perigo de vida da mãe ou da violação são questões que o direito já considera, são conflitos de interesses que constituem causas de exclusão da ilicitude. Todavia, por questões de eficiência jurídica, poderá admitir-se serem contempladas em Lei.
Ao contrário do “tom” em que se pronunciam as vozes do politicamente correcto, o aborto é um acto retrógrado. Na tendência, no futuro, com todos os meios disponíveis para planear uma gravidez, não se pode aceitar como razoável terminar com uma vida depois de ter sido gerada.