Faz hoje, precisamente, uma semana que o Príncipe Filipe, Duque de Edimburgo, foi sepultado na cripta da St George’s Chapel do Palácio de Windsor. A actual pandemia condicionou as “pompas fúnebres”, mas sem nada restar àquela “solenidade com recato” que o marido da Rainha Isabel II queria para o seu funeral.

Não obstante a sóbria dignidade de que se revestiu a cerimónia, talvez haja quem questione a conveniência de uma celebração religiosa cristã tão aparatosa, sobretudo em meios humanos e materiais, quando há tantas pessoas indigentes.

A questão remete para o comentário de Judas, quando Maria derramou sobre Jesus “uma libra de bálsamo feito de nardo puro de grande preço” (Jo 12, 3), em acção de graças pela ressurreição do seu irmão Lázaro. O apóstolo achou despropositado aquele gesto, porque o bálsamo – avaliado em cerca de trezentos denários (Jo 12, 5) – poderia ter sido convertido em esmolas. Por sinal, era o Iscariotes que geria a bolsa comum e, segundo o testemunho do apóstolo João, roubava do que nela se guardava (Jo 12, 6). Era com esse dinheiro que Cristo ajudava os pobres, prática que lhe era tão habitual que, quando Judas abandonou o cenáculo em que se celebrava a última Ceia, alguns apóstolos pensaram que ia exercer como esmoler do Mestre (Jo 13, 29).

Àquela objecção de Judas, respondeu Jesus: “pobres sempre tereis convosco, mas a mim não me tereis sempre” (Jo 12, 7-8). Ao contrário do que era suposto, Cristo, sempre tão atencioso com os mais necessitados, não aprovou a aparente solicitude social do discípulo infiel, e elogiou a generosidade da irmã do ressuscitado. Muito embora a devoção não se meça por critérios de opulência – a viúva, que entregou apenas duas pequenas moedas, deu mais do que os ricos que contribuíram com somas avultadas (Lc 21, 1-4) – as celebrações litúrgicas devem ser, tanto quanto possível, dignas de Deus.

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Mais importante do que a riqueza do culto, importa a sua sinceridade, como mais do que a preciosidade dos materiais e a excelência das formas, relevam as disposições interiores. Talvez alguns pensem que a fé, sendo uma realidade espiritual, não tem por que ser taxada em função de critérios materiais. Decerto, mas sendo o homem um ser espiritual e corporal, também assim deve ser o culto, como aliás acontece com o amor humano, que deve ser espiritual e expressar-se através de formas sensíveis de afecto.

Nas exéquias do Príncipe Filipe, não só não se fez alarde de opulência, como a sóbria elegância da celebração realçou a solenidade do acto. Registe-se o aprumo das Forças Armadas, a beleza do templo em que teve lugar o ofício religioso, a sublimidade dos cânticos, executados apenas por quatro excelentes cantores.

A presença discreta e respeitosa dos membros da família real, sobretudo a digníssima atitude da Rainha, também merece menção: não houve exibição de sentimentos, não houve testemunhos pessoais, nem extemporâneos aplausos porque tudo foi feito de acordo com o protocolo e com a liturgia. Cumpriu-se a multisecular tradição, dando azo também a uma certa inovação: a presença da Princesa Ana entre os que acompanharam, a pé, a urna, quando tradicionalmente esse cortejo estava reservado aos elementos masculinos da família real.

Não repugna que a monarquia se modernize, desde que não se vulgarize. O mesmo se diga do culto, que pode evoluir para novas expressões, desde que não se comprometa a transcendência que o especifica. A arte sacra, qualquer que seja, não deve procurar a satisfação do espectador, mas a elevação do crente. O Requiem, de Mozart, o Messias, de Haendel, e tantas peças de Bach e de outros compositores, inspiram elevados sentimentos, mas uma música ligeira, mesmo que com uma letra religiosa, dificilmente propiciará a oração contemplativa.

Vem a propósito recordar uma piedosa tradição da família real austríaca. A cripta da igreja dos capuchinhos, em Viena, é, desde há séculos, o panteão da família Habsburgo. É tradição que, à chegada do cortejo fúnebre, a igreja se encontre fechada. Um representante da família bate à porta e, do interior do templo, ouve-se uma voz que pergunta: ‘Quem é?’ Responde-se com a lista completa dos nomes e títulos do defunto. Mas, a essa apresentação, a voz responde, de dentro da igreja: ‘Não conheço!’ Repete-se o toque e a pergunta sobre a identidade do falecido. Dizem-se, de novo, as suas honrarias, mas de forma abreviada. Mas, mais uma vez, se ouve: ‘Não conheço!’ Ao terceiro toque e à pergunta de quem bate, responde-se apenas: ‘Um pobre pecador!’ É só então que as portas da igreja se abrem de par em par, para acolher na sua cripta o finado que, não pelos seus títulos e dignidades, mas pela sua humildade e contrição, é digno de aí repousar.

Com idênticos sentimentos, que honram a sua memória cristã, o Príncipe Filipe dispensou, nas suas exéquias, elogios à sua pessoa. Homenagens eram devidas, por certo, à sua centenária vida de serviço à Coroa e à nação, mas não naquele lugar sagrado, nem naquela celebração litúrgica. Que bom exemplo para os celebrantes que, por ocasião de um qualquer funeral, se apressam a canonizar expeditamente o defunto, usurpando competências exclusivas da Sé apostólica! Que pena quando, em vez de se anunciar a Palavra de Deus, fazem-se panegíricos fúnebres, em jeito de discurso político! Há eclesiásticos especialistas em exéquias de famosos, que pregam sobre tudo, menos a salvação, e esquecem o que era fundamental lembrar: a cristã obrigação de sufragar a alma do defunto!

As exéquias do Príncipe Filipe são um excelente exemplo, não apenas para os dignitários do Estado, que por vezes confundem informalidade com popularidade, mas também para os cerimoniários da Igreja que, à conta de um falso zelo pastoral, cedem à tentação de banalizar a liturgia. Quanto rigor e disciplina na prestação das honras militares! Que majestoso esplendor o do panteão real, na sua sóbria simplicidade! Quanta precisão e decoro no culto! Quanta sublimidade nos cânticos litúrgicos, que convidavam à oração! Quanta dignidade e discrição na respeitosa atitude dos membros da família real!

O funeral do marido da Rainha Isabel II foi uma excelente lição de protocolo do Estado, mas também de como a dignidade e beleza dos rituais cristãos antecipa, na terra, a liturgia celestial, que eternamente celebra a glória do “Rei dos reis e Senhor dos senhores” (Ap 19, 16).

Em saudosa homenagem filial ao ex-Chefe do Protocolo do Estado, Embaixador Carlos Macieira Ary dos Santos, por ocasião do aniversário, no dia 11, da sua Páscoa para a vida eterna.