“É sabido que a requalificação do solo rústico como solo urbano se traduz sistematicamente numa multiplicação de valor com grande impacto no mercado fundiário e no preço da habitação. (…) A pressão imobiliária e a crise habitacional levaram os últimos governos a procurar disponibilizar mais solo barato, facilitando a conversão de terreno rústico em terreno urbano. (…) Passa a permitir-se construir habitação, sem alterar planos em vigor através da deliberação dos órgãos municipais, mas agora também em solo rústico privado”.
Helena Roseta

Comecemos por realçar um aspecto sistematicamente omitido nestas discussões: é a urbanização que gera valor fundiário, não é a decisão administrativa que autoriza o desenvolvimento do processo de urbanização ou cria a expectativa do seu desenvolvimento futuro.

O modelo de planeamento urbano dos países desenvolvidos, no pós-guerra, pretendia responder à rápida urbanização, pretendia tornar o Estado monopolista na atribuição da capacidade de urbanização, isto é, colocar o Estado, e consequentes decisões administrativas, no coração do processo de criação de mais valias urbanísticas.

A justificação para esta opção estatista é a de que existem valores colectivos a salvaguardar na ocupação do território, como sejam a não ocupação dos terrenos mais férteis, a não ocupação dos leitos de cheia, a salvaguarda da qualidade do espaço público, a garantia do acesso à habitação por parte dos mais frágeis, etc..

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Sem surpresa, esta opção gerou a sua própria lógica de aumento do poder do Estado, ao ponto de Helena Roseta, no mesmo artigo citado, confundir um processo económico espontâneo (a urbanização) com o resultado de um processo administrativo: “É através do planeamento territorial que se estabelece essa classificação [de solo rústico ou urbano]”.

Esta confusão omite os resultados do modelo de planeamento assente na fantasia de que o Estado é o garante do bem comum e não um instrumento de repressão nas mãos das classes dominantes, havendo uma enorme quantidade de pessoas que consideram que a qualidade do espaço urbano só se garante com a intervenção dominante do Estado.

Antes desta posição dominante do Estado no desenvolvimento urbano, foram criadas algumas das mais bonitas e funcionais cidades do mundo, em paralelo com outros espaços urbanos infectos e insalubres, o que distingue uns espaços urbanos de outros não é a presença ou ausência de Estado, mas a riqueza das comunidades que criaram uns e outros.

A presença dominante do Estado no controlo do processo de urbanização teve como resultados principais a corrupção associada ao sector económico (naturalmente, visto que o acesso à mais valia da urbanização passou a depender de decisões administrativas), alguns espaços urbanos admiráveis ocupados pelas classes dominantes, inúmeras áreas urbanas de génese ilegal, de maneira geral associadas à pobreza e à falta de qualidade, para além de uma escassez generalizada de oferta de habitação que se traduz no desequilíbrio entre oferta e procura que pressiona os preços da habitação para cima.

No caso português, todos estes aspectos são acentuados pela destruição administrativa do mercado de arrendamento, pela escassez do mercado social estatal de habitação (os 2% de habitação estatal são ainda menos que os 3% de habitação em que o Estado impõe aos proprietários obrigações sociais que não lhes competem) e, acima de tudo, pela destruição da confiança dos investidores no mercado da habitação, fruto da volatilidade e arbitrariedade das regras e do esmagador populismo que impede uma liberalização séria do sector, como aquele que agora se manifesta a propósito de uma alteração à lei dos solos sem grande interesse, complicada, burocrática e com muito pouco potencial para gerar confiança nos investidores.

Os populistas do ordenamento do território que por estes dias se manifestam, com largo apoio da comunicação social, falam de valores máximos de vendas de casa como coisas garantidas (como se o valor de venda da casa, antes de tudo, não fosse o ponto de encontro do interesse do comprador e do vendedor), falam da especulação como um papão a combater (estão mais interessados na apropriação colectiva da mais valia fundiária que na garantia de acesso à habitação por parte dos mais frágeis) e conseguem mesmo dizer que o aumento da oferta provoca um aumento do preço, como se houvesse uma espécie de magia no mercado imobiliário que permite aos promotores fixar os preços que entenderem, que haverá sempre compradores que os aceitam.

A alteração à lei dos solos, a sétima desde que o diploma foi aprovado há uns dez anos, não é grande coisa, resulta de um visão pequenina, autárquica, do problema, fundamentada em argumentação tão sólida como a usada pelo Senhor Ministro Castro Almeida — “Ninguém melhor que os eleitos locais, os representantes do povo de cada concelho, para ajuizar com a máxima transparência, o que é melhor para as suas terras” –, como se alguém ser eleito para o que quer que seja lhe confira uma sabedoria imanente que dispensa qualquer esforço de definição de regras que garantam a solidez institucional e a integridade do processo do decisão.

Há um problema sério de acesso à habitação para quem precisa hoje de uma nova casa (a grande maioria das pessoas comuns não estão nessa situação, é bom lembrar), mas isso não se resolve com a defesa desmiolada do sistema de planeamento que nos trouxe onde estamos hoje, nem com alterações pífias que esquecem o essencial do problema: a confiança dos investidores num mercado fortemente distorcido por um Estado que não está disposto a prescindir dos pequenos poderes que tornam relevante tanta gente irrelevante.

Do que precisamos é de liberalizar a sério todo o sector, começando por acabar com o monopólio do Estado na atribuição da licença para urbanizar, ao mesmo tempo que reforçamos os mecanismos institucionais que garantam o acesso à habitação – em especial daqueles que o mercado marginaliza – e a salvaguarda de valores colectivos verdadeiramente relevantes, como os solos mais férteis, zonas inundáveis, áreas de especial interesse de conservação, etc..

Álvaro Dentinho, provavelmente o arquitecto paisagista mais criativo da sua geração, toda a vida lamentou que se tivesse proibido a urbanização de Monsanto, uma zona com óptima aptidão urbana, desviando a pressão urbana para os vales (em Benfica, Alcântara, Loures, etc.) e zonas em que os solos agrícolas são tão bons que até o betão cresce, como em Oeiras.

A memória deste erro trágico devia levar-nos a ter alguma cautela em relação à defesa cega da bondade do Estado como garante de um ordenamento do território que verdadeiramente sirva as comunidades que sempre geriram as paisagens em que vivem.