1. Não gosto de escrever sobre temas onde são mais as dúvidas e as interrogações do que as certezas. E, no chamado caso das offshores, até meio da tarde desta quarta-feira só tínhamos uma certeza: o anterior Governo tinha optado por não publicar no Portal das Finanças as estatísticas relativas às transferências para um conjunto de offshores. Pelo menos desde Maio do ano passado que esse facto era público. E durante quase uma semana o anterior secretário de Estado dos Assuntos Fiscais, Paulo Núncio, embrulhou-se em declarações contraditórias, acabando por dar uma explicação para o seu grave erro que não convenceu ninguém.

De resto, até às intervenções do actual secretário de Estado, Rocha Andrade, tudo o resto eram dúvidas e suspeições. Vejamos então o que passámos a saber e aquilo que ainda desconhecemos.

Antes dele falar não sabíamos por que motivo a Autoridade Tributária não registara devidamente cerca de 10 mil milhões de euros de declarações enviadas pelos bancos. Depois ficámos a saber que essas declarações são relativas a 14 mil transferências que ficaram “ocultas” por um mau funcionamento do sistema informático.

Não sabíamos como é que elas tinham sido “descobertas”, agora ficámos a saber que entretanto entrou em funcionamento um novo sistema informático que apurou valores muito diferentes, o que fez disparar os alarmes. Não foi a publicação de estatísticas que fez a diferença (este Governo começou por publicar estatísticas erradas) – foi a diferença de valores entre os dados tratados pelo anterior e pelo actual sistema informático que mostrou que algo estava mal.

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Não sabíamos se havia algum euro de impostos por cobrar, isto é, se o tratamento das declarações permitiria encontrar divergências entre os dados fornecidos pelos bancos e os fornecidos pelos contribuintes, e ainda não sabemos, mas Rocha Andrade disse não estar “em condições de afirmar se há um tostão de imposto em falta”, mesmo não sendo possível garantir que falha informática “não levou a perda fiscal”.

Não sabíamos se tinha havido neste processo alguma interferência política, mas o mesmo secretário de Estado disse não ter encontrado nenhum indício que isso tenha ocorrido. Tal como acrescentou não considerar estranho que os números conhecidos pelo seu antecessor devessem, só por si, ter chamado a atenção para que alguma coisa pudesse estar mal.

Por fim não sabíamos porque é que o Governo estava a demorar tantos meses a perceber o que se passara, mas agora sabemos que a auditoria da Inspecção-Geral de Finanças ao sistema informático só estará concluída no final deste mês de Março.

O que ainda não sabemos é se existe algo mais do que erro estatístico na estranha relação entre a dimensão do erro informático em 2014, a dimensão desse erro no caso do Panamá e ter sido nessa altura que se deu a crise do BES. Pode ser só coincidência, mas com certas “coincidências” já ficámos bem escaldados.

Tal como ainda não sabemos porque é que estes esclarecimentos levaram tanto tempo a ser dados de forma clara, permitindo que no entretanto se instalasse a confusão entre a ausência de estatísticas publicadas e a possibilidade de uma gigantesca fuga aos impostos, umas águas turvas onde muitos chafurdaram

2. Vejamos agora algumas coisas que foram ditas nos últimos dias, algumas delas repetidas pelas mesmas ou por outras palavras ainda esta quarta-feira na Assembleia da República.

Primeiro, a habitual campeã da demagogia, Catarina Martins, líder do Bloco de Esquerda, numa declaração aos jornalistas: “O Governo anterior deixou sair pela porta do cavalo 10 mil milhões de euros, é um número que não é nada pequeno (…) é bem mais do tudo o que gastamos com o Serviço Nacional de Saúde.”

Depois o próprio primeiro-ministro, que parece estar empenhado em retirar à esquerda radical o exclusivo do discurso extremista, falando durante o último debate parlamentar: “É absolutamente escandaloso que um Governo que não hesitou em acabar com a penhora da casa de morada de família por qualquer dívida tenha tido a incapacidade de verificar o que aconteceu com 10 mil milhões de euros que fugiram do país“.

Eurico Brilhante Dias emulou esta quarta-feira o líder socialista, mas com tais excessos que até a sua bancada só o aplaudiu de forma envergonhada, Mariana Mortágua esteve igual a ela mesma e Miguel Tiago, do PCP, já depois das explicações do secretário de Estado do governo que o seu partido apoia, ainda insistiu que neste caso houve “6% do PIB português que escapou do país”.

O que está em causa neste conjunto de declarações não é apenas “fazer política”, explorar um erro do anterior Governo e tratar de desviar as atenções de outros temas mais incómodos. O que aqui está em causa é algo diferente e muito mais grave no seu significado.

O pano de fundo é fácil de entender: sempre que se fala em offshores a reacção popular é “puxar da pistola”. Não vou discutir se bem ou mal – até acho que, em muitas circunstâncias, há todas as razões para puxar mesmo da pistola –, estou apenas a constatar que se trata de um terreno ideal para toda a demagogia. E para o mais rasteiro populismo, mas já lá irei.

Comecemos pela demagogia. Não houve 10 mil milhões de euros “a sair pela porta do cavalo”, como acusou Catarina: houve 10 mil milhões cuja saída (legal até ver) foi comunicada pelos bancos mas não foi devidamente registada pela máquina fiscal. Esses 10 mil milhões nunca pagariam o SNS, pois se houver algum imposto devido (e pode não haver) estaremos a falar de alguns milhões de euros, no máximo. Os 10 mil milhões também não “fugiram” do país, como disse Costa: pelo menos uma boa parte deles destinou-se a pagar operações comerciais, informou o seu secretário de Estado. E ninguém podia “verificar o que aconteceu” a dinheiro que, na altura, não aparecia registado no sistema informático. Sobretudo nada disto tem a ver com o combate à evasão fiscal e à cobrança de dívidas fiscais, algo que melhorou muito nos últimos anos a todos os níveis da máquina fiscal. Em contrapartida, tudo isto tem a ver com uma insinuação soez: a da conivência com a fuga ao fisco dos “grandes”.

3. Dir-se-á: mas de demagogia estamos todos nós cansados. De uma forma ou outra todos bebem na mesma fonte. É verdade. O que torna este tipo de declarações mais graves é que elas dão mais um passo ao explorarem um preconceito bem presente na opinião pública para o virar não apenas contra os adversários políticos – o anterior Governo –, mas também contra “o sistema” que protege “os ricos” e oprime “o povo”. Ora isso é exactamente o que é o populismo.

Cas Mudde e Cristóbal Rovira Kaltwasser, num pequeno livro que acaba de sair em Portugal, “Populismo – Uma Brevíssima Introdução” (Gradiva), escrevem: “Definimos populismo como uma ideologia de baixa densidade que considera que a sociedade está, em última instância, dividida em dois campos homogéneos e antagónicos – “o povo puro” versus “a elite corrupta” – e que defende que a política deveria ser uma expressão da volonté générale (vontade geral) do povo

Este não é o espaço próprio para elaborar mais sobre o sentido desta definição, mas o que nela é importante é que permite perceber que o populismo não corresponde a uma ideologia em concreto, antes a uma forma de fazer política. Por isso há populismos de direita como os há de esquerda, como existem até de centro (algo que ainda esta semana notava o colunista do Financial Times Wolfgang Münchau).

Em Portugal a deriva populista, este discurso do povo contra as elites, dos puros contra os corruptos, tem sido uma das especialidades do Bloco de Esquerda. Nada de demasiado surpreendente se pensarmos que os seus homólogos espanhóis, do Podemos, até teorizam sobre as virtudes do populismo e o seu líder, Pablo Iglésias, foi ao ponto de cunhar um epíteto – “la casta” – para definir todos os seus adversários.

A novidade é a forma despudorada como o PS e o seu líder, por circunstâncias da vida nosso primeiro-ministro, também fizeram seu este tipo de discurso. O partido que, mais do que assistir mudo, cerrou fileiras em torno de alguém como José Sócrates, que defendeu os “negócios de Estado” que ele promoveu a partir de São Bento nas circunstâncias que hoje conhecemos, devia, no mínimo, ter mais cuidado quando atira lama para o ventilador.

Nesta quarta-feira, no Parlamento, depois dos esclarecimentos de Rocha Andrade, só a esquerda radical pode, por ideologia, prosseguir na sua catilinária. Infelizmente o PS também parece querer fazer o mesmo. É talvez altura de alguém mais sereno recordar naquela casa que o populismo “centrista” não está isentos de riscos.