Tinha aspecto de índia. Apresentava aquela tez acastanhada dos autóctones dos Andes. Olhos escuros, cabelo castanho quase preto, cara simpática. Falava inglês com um forte sotaque espanhol e ria facilmente. Parecia que um dos seus propósitos era rir e as minhas piadas faziam-na soltar uma gargalhada musical.

Estávamos num terraço no centro de Istambul e descobríamos o que nos trouxera à cidade que ligava o ocidente ao oriente, a Europa à Ásia. Ela dava uma volta ao mundo e rumara à Turquia num impulso. Abandonara Itália com o visto caducado e enquanto esperava pela autorização para entrar no Vietname decidira aguardar em Istambul. Explicou-me que deixara a Colômbia, sua terra natal, há quase meio ano, convencida de que a ausência duraria apenas dois meses. “Divirto-me tanto que não quero parar”.

Começara o périplo em Miami, onde “sentira a riqueza da cidade”. Seguira-se Portugal, Espanha, França e Itália. A visita relâmpago à antiga capital do império Otomano – ficaria apenas até à chegada da resposta de Hanoi – não estava nos planos e, como tal, não sabia o que explorar.

Cruzámo-nos novamente no dia seguinte, quando um almoço nas redondezas me permitiu uma excursão rápida ao hostel para trocar de indumentária. Vestira-me com demasiadas camadas para os dias de Junho na península da Anatólia e aproveitei para trocar de roupa. Ao descer do quarto, encontrei-a. Terá sido uma coincidência ou estaria predestinado nos astros que acabaríamos por visitar juntos a Mesquita Azul?

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O acaso ou o fato traçou-nos um percurso por Istambul. Saímos para as ruas e durante dois dias e meio descobrimos as artérias de uma urbe com quinze milhões de pessoas. Conversámos sobre o que importa: sobre religião e a vida, sexo e amor, drogas e os sonhos. Discursámos com frontalidade, sem receios. O facto de sabermos que não nos voltaríamos a ver libertou-nos.

Disse-me que estávamos destinados a conhecer-nos. Era imperativo, ambos tínhamos a aprender um com o outro, observou ela. Partilhou um ensinamento e rematou: “Talvez seja isto que tens a aprender comigo”. Perguntei-lhe o que tinha eu para lhe ensinar. Sorriu enigmaticamente. “Ainda não sei”.

No último dia da nossa companhia itinerante, atravessámos a linha de água rumo ao lado asiático de Istambul. Apanhámos um barco e vimos a cidade como marinheiros. Enquanto abríamos caminho e o sol empurrava as nuvens, houve umas gaivotas que se aproximaram. Dei-lhes de comer e ela divertiu-se a filmar-me.

Despedimo-nos com um abraço anticlimático. Não fez jus à honestidade nem à vulnerabilidade daqueles dias. Contactei-a mais tarde quando preparava uma visita à Colômbia. A resposta tardou e chegou sem emoção. Compreendi que a gaveta do nosso encontro estava fechada. Fora arrumada na prateleira dos cruzamentos temporários. Ela, batida na senda dos viajantes, destinara o nosso momento aos limites de Istambul e desapegara-se assim que a fronteira ficara à vista. Fomos duas rectas que se intersectaram na brisa do Bósforo. Teria de ser ali, no estreito que une o oriente ao ocidente. Regressei à Europa. Ela continuou para este, atrás da rota que a levaria um dia às montanhas dos Himalaias.

Nunca soube que um rapaz e uma rapariga pudessem ser tão amigos em tão pouco tempo. Ela chamava-se Valeria.