Quando em 2021 o governo publicou a Estratégia Nacional de Combate à Corrupção (ENCC), e definiu como prioridade central “Melhorar o conhecimento, a formação e as práticas institucionais em matéria de transparência e integridade”, foram poucos, aliás, muito poucos, aqueles que deram a devida importância ao papel da Escola e, consequentemente, da Educação para a Cidadania, como espaço privilegiado para “incutir às nossas crianças e jovens o sentido da integridade (…), e uma ética de cidadania que gere sentimentos de repúdio em relação a este tipo de práticas.”
Em vez disso, o debate em torno da recém-criada ENCC desviou as atenções do essencial – o papel prático da Escola na promoção de cultura de integridade.
Recentemente, foi constituído um grupo de trabalho pela Direção-Geral de Educação, e do qual faz parte a Associação All4Integrity, com o objetivo de produzir um Referencial de Educação para a Transparência e Integridade, a incorporar no grupo temático dos Direitos Humanos. Na semana passada, a imprensa deu conta que a temática da corrupção vai ser matéria facultativa nas escolas. Sem apelo nem agravo, surgiram de imediato vozes que, em vez de dar vivas pela decisão, sem precedentes, de integrar no programa de Educação para a Cidadania o tema da corrupção preferiram reclamar a obrigatoriedade do mesmo no dito programa.
Perante isto, uma pergunta se impõe: a quem serve esta discussão? Atacar um governo sem norte que delibera ‘ao dia’ e sem visão prospetiva? Incendiar a opinião pública que, na sua generalidade, não conhece o funcionamento de uma escola, os programas das diferentes disciplinas, nem tão-pouco os fundamentos e os temas que fazem parte da Estratégia Nacional da Educação para a Cidadania? Agitar a Escola e os seus principais protagonistas? Alimentar, constantemente, um discurso de bloqueio que em nada contribui para empoderar e mobilizar atores públicos, chave na luta contra a corrupção?
Seguir por este caminho pode ser um desastre político, administrativo e pedagógico, com consequências perversas para a formação dos nossos jovens e para a vida das respetivas comunidades educativas. Até se tornar um tema obrigatório muito caminho teremos de trilhar.
Hoje, na minha qualidade de professora, com 25 anos de experiência letiva em todos os níveis de ensino, entre o 2º CEB e o Secundário, assisto com grande satisfação à introdução deste tema no plano de Educação para a Cidadania, mesmo que de forma facultativa e faseada. Haverá, no entanto, quem discorde desta opinião argumentando que há uma incoerência política entre o que foi definido na ENCC quanto ao papel da Escola e da Educação para a Cidadania e a prática efetiva em contexto escolar. Mas este é o ponto – a Escola é demasiado importante para ser, mais uma vez, envolvida em discussões que interferem diretamente na sua vida e na concretização do respetivo Projeto Educativo, sem que a própria tenha uma palavra a dizer a esse respeito. É preciso conhecer muito bem a realidade da Escola sob pena de serem tomadas decisões levianas e irreversíveis para a formação dos nossos jovens.
Na verdade, a área denominada Cidadania e Desenvolvimento tem uma estrutura diferente consoante o ciclo de ensino — integrada transversalmente no currículo, na Educação Pré-escolar e no 1º Ciclo, uma disciplina autónoma no 2º e 3º Ciclos e, no ensino secundário, é desenvolvida com o contributo de todas as disciplinas e componentes de formação. Com uma estrutura tão diversificada quanto esta corre-se o sério risco da obrigatoriedade da abordagem de um tema tão importante, e ao mesmo tempo tão sensível e técnico, quanto a corrupção, poder ser facilmente subvertida e transformada num mero registo de sumário, desmobilizando os professores.
Diz-me a experiência que a autonomia das Escolas abre portas a caminhos mais ricos e duradouros que promovem uma efetiva Educação para a Cidadania. Diz-me a experiência que a Escola otimizará muito mais os seus recursos – humanos e materiais – e com maior entusiasmo, quando a Comunidade Educativa identifica, por ela, o eixo que os une a todos. Diz-me a experiência que quando agitamos as águas no meio escolar cresce a contrariedade, e quando a contrariedade tem como público as novas gerações os efeitos podem ser, irreversivelmente, arrasadores, por falta de investimento didático, pedagógico e/ou científico.
Quando concebi e implementei o programa de literacia anticorrupção RedEscolas AntiCorrupção – escolas que nos inspiram uma cultura de integridade, juntamente com outros dois professores, estava convicta que o sucesso do mesmo passava pela sua capacidade de, forma integrada, abarcar diversos objetivos. Por isso, a flexibilidade e a interdisciplinaridade eram, e são, a chave deste programa da associação apartidária All4Integrity que viu este ano letivo triplicar o número de escolas participantes.
Em apenas um ano letivo, o programa chega a 4100 alunos, a 100 professores e a 3 continentes prevendo-se, já no próximo ano letivo, chegar ao Brasil, a Cabo Verde, ao Chile e aos EUA e, certamente, a muito mais escolas portuguesas.
Hoje, são inúmeros os contactos de professores, diretores e associações de pais que querem levar o programa para as suas Escolas pela sua conceção integrada, desde a definição de objetivos, o planeamento, a metodologia e o acesso aos recursos. A par destes atores educativos também são vários os atores públicos, que não ficaram indiferentes à tipologia de trabalho que temos vindo a desenvolver, como é o caso do Instituto Português do Desporto e da Juventude e o próprio Mecanismo Nacional Anticorrupção.
Não há dúvidas que a Escola de hoje tem, mais do que nunca, de estar atenta aos problemas da sociedade, preparando os nossos jovens em primeiro lugar, mas também, a comunidade educativa, para uma convivência plural, inclusiva e democrática. E isso não passa, necessariamente, por impor temáticas no plano de Educação para a Cidadania, porque o tema da ‘corrupção’ ultrapassa as agendas políticas e a Escola não pode ser vítima delas. A Escola é esse espaço maior que procura promover, junto dos jovens, o sentido de espaço público e bem comum, a confiança e empatia por instituições locais, num processo de elevação de consciências e alteração de comportamentos que favoreçam a disseminação e aprofundamento de uma cultura de integridade em Portugal.