Se Bolsonaro é o fascista que dizem ser, por que razões tantos democratas brasileiros se recusam a fazer frente comum com Haddad, o candidato do PT que o defronta nesta segunda volta das eleições presidenciais? Porque se recusa muito especialmente Fernando Henrique Cardoso a apelar ao voto “anti-fascista”? Porque não meditam um pouco as legiões de indignados sobre as razões de pessoas como o antigo presidente se recusarem a formar a “frente anti-fascista” que tanto reclamam?
Mais: como é possível que a maioria dos brasileiros esclarecidos, moderados, civilizados, cultos, se prepare para votar num candidato nos é apresentado como um neofascista preparado para dar cabo, num ápice, da democracia brasileira?
Sem procurarmos responder seriamente a estas questões não podemos ir muito além das “explicações” para atingirmos a compreensão. E, nessa altura, sermos capazes de sair da armadilha dicotómica que nos apresenta de um lado um candidato inapresentável com quem não nos sentaríamos à mesa (eu não me sentaria) e, do outro, o continuador de um passado recente horrível mas que até é simpático e culto.
Era muito simples se a escolha fosse apenas entre o que tanto podemos descrever como uma “cabeça tosca, impreparada e perigosa” ou até mesmo como um “canalha” (Bolsonaro) e um candidato que o é apenas por procuração (Haddad nunca quis ser mais do que a representação de Lula). Mas não é – as coisas são mais complicadas.
As explicações para o apoio popular a Jair Bolsonaro são muitas e só quem tiver estado desatento à evolução da situação no Brasil nos últimos anos não as entende. Quem, por exemplo, não tiver percebido que os esquemas de corrupção que capturaram todos os grandes partidos do sistema político não foram invenções de juízes inimigos do PT, mas uma gangrena que tinha o PT no centro e Lula como um dos seus beneficiários. Que antes do “petrolão” tinha havido o “mensalão”. Que mesmo podendo existir políticos mais sujos noutros partidos do chamado “centrão”, os brasileiros identificam este clima de podridão com os longos anos de lulopetismo.
Ou quem não se tiver apercebido do colapso de um “milagre económico” que, afinal, não era mais do que a exploração da renda dos preços elevados das matérias-primas, em especial do petróleo. Foi essa renda que permitiu a esse mesmo lulopetismo promover os seus generosos programas sociais – mas quando essa renda terminou, e ela terminaria sempre, tudo ruiu como um castelo de cartas. Regressaram níveis desemprego como há muito não se viam e a velha pobreza, cujas raízes estruturais não tinham sido arrancadas, apenas disfarçadas, revelou-se de novo com a sua crueza bem brasileira.
Desde as grandes manifestações populares contra Dilma em 2013 que a ruptura na sociedade brasileira era evidente. De então para cá a situação só se tem agravado, potenciada pela sensação geral de insegurança. O Brasil tem várias cidades entre as mais violentas do mundo. O ano passado registaram-se no país quase 64 mil assassinatos. É um número inimaginável. Quatro vezes mais do que os Estados Unidos, que tem o dobro da população. Por dia são assassinadas tantas pessoas como em ano e meio em Portugal.
Corrupção sem limites, crise económica profunda e insegurança generalizada ao fim de 14 anos de governo do PT, ou de lulopetismo. Alguém se surpreende que exista no Brasil uma enorme vontade de mudança? Ninguém. A maior surpresa será como essa vontade acabou por ser encarnada por alguém como Jair Bolsonaro, mas também para isso há boas explicações que remetem sobretudo para o colapso dos grandes partidos tradicionais, engolidos também eles pelos escândalos de corrupção e incapazes de formular respostas sólidas e alternativas aos problemas do país.
Chegados a este ponto há quem nos queira empurrar para uma escolha que dizem inevitável, mesmo que horrível. Não queres o fascismo? Vota Haddad. Não queres a Venezuela? Vota Bolsonaro.
Pois eu não quero nem uma coisa nem outra mas não acho que necessitasse de me violentar – se fosse brasileiro – no próximo domingo. Votaria em branco, como já fiz em Portugal tantas vezes, sendo porventura dessas vezes que depois menos me arrependi da forma como votei. E não, não recearia que essa minha opção conduzisse o Brasil para o precipício por ter contribuído, por omissão, para entregar o poder a Jair Bolsonaro, como tudo indica que acontecerá tal a sua vantagem em todas as sondagens. De resto, acho mesmo que o Brasil correria mais riscos de uma deriva imprevisível no caso de vitória de Fernando Haddad – e essa é uma realidade de que ninguém fala em Portugal, onde o candidato do PT alcançou o estatuto de um quase santo.
Primeiro que tudo, separemos águas: no Brasil não se escolherá entre um mal maior e mal menor, escolher-se-á entre dois males maiores. Não estamos a falar de votar em Macron ou em Chirac para derrotar um membro da família Le Pen, muito menos em votar em Mário Soares para não eleger Freitas do Amaral (por mais ridículo que este paralelo nos possa parecer nos dias que correm). Fernando Haddad não é um candidato centrista que enfrenta um extremista – é um extremista de sinal oposto, mesmo que tenha arredondado as suas arestas.
Falemos, pois, um pouco do que ninguém fala: do programa do PT. Não das falinhas doces desta segunda volta, mas do que foi sendo dito na primeira volta. Ou seja, apliquemos a Haddad os mesmos critérios que aplicamos a Bolsonaro, de quem recordamos sempre o que disse no passado e desvalorizamos sempre o que diz agora. Ora, Haddad foi, desde o início, e nunca o escondeu até passar à segunda volta, o candidato em nome de Lula, uma máscara, senão mesmo um boneco. A sua “chapa”, ao contrário das anteriores candidaturas do PT à Presidência, que associavam sempre uma figura centrista, tem agora como segundo nome Manuela D’Ávila, uma radical do PCdoB, um partido comunista cuja ortodoxia faria empalidecer a do nosso PCP (e sei do que falo, garanto-vos). Não é um detalhe, até porque ela é uma entusiasta declarada do regime venezuelano.
Mas o radicalismo da candidatura de Haddad não se fica por aqui. Num editorial recente, em que analisava o seu programa eleitoral, o insuspeito Estado de São Paulo escrevia mesmo ser “pior do que a Venezuela”: “Dá a impressão de que o partido vê nessa eleição a oportunidade para fazer o que sempre quis fazer, mas que não havia conseguido, ou seja, assenhorear-se do poder e dele não mais se afastar”. De facto nesse programa – de que agora Haddad se procura parcialmente distanciar – falava-se de “novo processo constituinte” (para quê?), de “soberania popular em grau máximo” (uma linguagem tipicamente bolivariana), de “controle social na administração da Justiça” (isso mesmo), da possibilidade de convocar plebiscitos (o caminho seguido por Hugo Chávez para concentrar em si todo o poder), de “regular” (leia-se controlar) a comunicação social e por aí adiante.
É neste quadro que a frase que tem perseguido Haddad não foi dita por ele mas por José Dirceu, o famoso arquitecto do mensalão e antigo braço direito de Lula, ao El País, e é mais do que reveladora: “É uma questão de tempo para a gente tomar o poder. Aí nós vamos tomar o poder, que é diferente de ganhar uma eleição”.
Quando lemos as entrevistas e os textos de Fernando Henrique Cardoso percebemos porque é que ele, sendo um homem de esquerda, se recusa a apelar ao voto contra Bolsonaro e diz que “não está vendendo a alma ao diabo”. Ele conhece o PT. Os vícios do PT. Ele sabe que o PT não aprendeu nada, não se arrependeu de nada, não pediu desculpa por nada e não fez nem fará auto-crítica. Sabe ele, como sabe Marina Silva, como sabe Ciro Gomes, dois antigos “compagnons de route”, sendo que o apoio da primeira a Haddad soou quase como um não apoio e o segundo, pressionado por todo o lado, acabou por mesmo assim não apelar ao voto no candidato do PT.
Eles sabem, eles viveram e vivem no Brasil, eles sofreram às mãos do PT, conhecem os seus métodos, a sua agenda política, as suas falinhas mansas. Por muito que os horrorize Bolsonaro, não se equivocam: não estamos a falar de pôr apenas uma mola no nariz, até porque aos vícios do passado o lulopetismo de hoje acrescentou um defeito maior, o impulso revanchista.
Mas dir-me-ão: conhecendo eu, como conheço, as tendências autoritárias de Jair Bolsonaro, o homem que elogiou torturadores, o candidato que tem como número dois na lista um general, não receio estar a contribuir por omissão para que chegue democraticamente ao poder alguém que, depois, destrói a democracia?
Esse risco existe. Para ser franco até creio que esse risco é maior na hipótese remota de Haddad ser eleito e, depois, ceder à tentação de conceder um indulto a Lula da Silva, como pede (exige?) a sua base de apoio. Nessa altura, e só nessa altura, eu teria receio de uma intervenção dos militares. Com Bolsonaro haverá militares no Governo, mas isso não é sinónimo de os militares estarem no poder. O capitão não vale nada no Exército, que até não o aprecia muito.
A questão central, em ambos os cenários, é a da resiliência das instituições brasileiras. Já tinha este texto praticamente terminado quando, esta sexta-feira, pude ver que a The Economist tem sobre estas uma avaliação muito semelhante à que fui formando nas últimas semanas. E que se resume em poucas palavras: apesar de a democracia brasileira ser relativamente jovem, já deu boas provas, e apesar de o Brasil ter um sistema de governo presidencialista, o poder do Presidente é limitado por um Congresso onde Bolsonaro não terá a maioria e por o país ser um Estado federal onde muitas das competências pertencem aos governos e às legislaturas estaduais.
Como a revista recorda, apesar de tudo no Brasil o Congresso já destituiu dois presidentes (Collor de Mello e Dilma Rousseff) e a Justiça já prendeu um terceiro (Lula da Silva). Quanto à imprensa brasileira, ao contrário do que sucede em muitos países, é forte e tem publicado notícias e investigações ao longo da campanha que incomodaram ambos os candidatos. Ainda bem e assim continue.
Também já não estamos no tempo da Guerra Fria e, se todos nos lembramos dos anos do regime militar, a verdade é que o exército brasileiro não tem as tradições golpistas de outros exércitos sul-americanos: o seu registo é de três golpes em dois séculos de história. Ou seja, se virmos bem, comparativamente os militares brasileiros portaram-se até melhor do que os portugueses neste mesmo intervalo de tempo.
Claro que me posso enganar, mas não vejo que os perigos que qualquer um destes candidatos representa, e Bolsonaro em particular, fossem suficientes para, sendo eu brasileiro, colocar a cruzinha num deles para barrar o caminho ao outro.
A aparente civilidade de Haddad não é suficiente para me fazer esquecer o horrível programa, a terrível herança e os temíveis instintos do lulopetismo.
Os aspectos que me agradam no programa económico de Bolsonaro, e que espero ele possa levar por diante no Congresso, não são suficientes para me fazer ultrapassar a repulsa pelo personagem e pelos seus tiques autoritários.
Parece que dizer ou escrever isto em Portugal, país onde todos têm de se manifestar em manada e de acordo com a mesma cartilha, é crime de lesa-pátria. Paciência: é em absoluta liberdade aquilo que eu penso.
(Correção: Ciro Gomes acabou por não apelar ao voto em Haddad, ao contrário do que se referia numa primeira versão deste texto.)
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