Está implícito um certo imperativo moral e ético quando nos dispomos a construir e a edificar uma globalização de rosto humano. E, em modo muito especial, vemos como o Papa Francisco se apresenta proactivo nesta construção, sendo ele, tantas vezes, a dar o passo e a indicar o roteiro para essa mudança paradigmática. Aliás, a Carta Encíclica Fratelli Tutti do Papa Francisco, escrita no ano de 2020, é prova disto mesmo.
O Papa Francisco não se diminui em esforços para consciencializar, promover e construir uma cultura marcadamente humanista e humanizadora, integral e integradora. Aliás, numa brilhante alocução feita na World Economic Forum, em 2024, o Papa Francisco deixa um alerta e um convite:
“O processo de globalização, que já demonstrou claramente a interdependência das nações e dos povos do mundo, tem uma dimensão fundamentalmente moral, que deve fazer-se sentir nos debates económicos, culturais, políticos e religiosos que visam modelar o futuro da comunidade internacional. Num mundo cada vez mais ameaçado pela violência, pela agressividade e pela fragmentação, é essencial que os Estados e as empresas se unam na promoção de modelos de globalização clarividentes e eticamente sólidos que, pela sua própria natureza, devem subordinar a busca do poder e do lucro individual, tanto político como económico, ao bem comum da nossa família humana, dando prioridade aos pobres, aos necessitados e a quantos se encontram em situações mais vulneráveis” (Francisco, 2024b).
Daí a importância para o processo da globalização da antropologia teológica na promoção da pessoa humana, dos seus irrefutáveis direitos e dignidades, e na construção de sociedades que promovam o bem-estar geral em ordem, sempre, ao Bem Comum e a uma cultura ecológica integral, assente na sustentabilidade, na protecção do meio ambiente e consciencialização de todos na defesa da vida nesta Casa Comum (como tão belamente apelida o Papa Francisco ao nosso planeta).
Nesta ordem de pensamento, o teólogo Johann-Baptist Metz propõe o recurso universal ao monoteísmo bíblico para uma sã e salutar relação entre as diversas culturas e povos. E isto prossupõe, antes de tudo, um monoteísmo sensível ao sofrimento. O sofrimento é, na verdade, uma questão universal. “É desta sensibilidade que resulta a responsabilidade pelo outro, sem distinções, e, nesse sentido, a universalização dessa responsabilidade por reacção ao sofrimento universal. Disto poderia resultar aquilo que Metz denomina de uma ética global da compaixão, como possibilidade de consenso mínimo entre a diversidade cultural e mesmo religiosa. O critério fundamental dessa ética seria autoridade do sofredor inocente, seja de que cultura for, seja de que religião for ou de religião nenhuma (ou da religião sem religião). Não se trata de uma ética totalizante, muito menos totalitária que implicasse uniformidade de acção, porque se baseia na autoridade dos débeis e de cada ser humano vulnerável e concreto, que não permite totalização, nem totalitarismos. Nesse sentido, a sua universalidade coincide com a máxima particularidade porque o sofrimento de cada um é irrepetível, porque se refere à unicidade de cada pessoa, antes mesmo das suas qualificações tribais ou culturais” (Duque, 1999).
Portanto, se se pretende que o processo de globalização evite a tribalização moral, não se pode negar ou esquecer o núcleo religioso da humanidade. E, para além disso, podemos prever que através do envolvimento das religiões, a autoridade do outro como sofredor inocente se transforme no principal recurso, “seja contra o tribalismo que fragmenta a humanidade e origina confronto violento, seja contra a diluição das identidades numa uniformidade instrumental de teor mercantil, mediática ou tecnológica. Este ecumenismo da compaixão, como lhe chama Metz, não possui apenas pertinência religiosa, mas também política e que permite pensar uma política global escrupulosa nestes tempos de globalização” (Duque, 1999).
Encontrávamos, assim, um caminho teológico uma vez que tem origem na tradição monoteísta hebraica, mas universalizável para além do tipicamente teológico. A aplicação deste caminho, poder-se-ia basear (e muito) na teologia da hospitalidade.
É nesta ordem de razão que o Papa Francisco tem apelado para um compromisso ao qual todos, hoje, somos chamados, ou seja, “criar um movimento global contra a indiferença que cria ou recria instituições sociais inspiradas nas Bem-aventuranças e nos exorta a buscar a civilização do amor” (Francisco, 2021).
Nesta linha de pensamento, José Eduardo Franco assevera que “podemos colher inspiração e fundamento para propor um conjunto de sete princípios que podem contribuir para educar as crianças e jovens de hoje em ordem à construção de uma globalização de rosto humano que deve passar pela ideia de glocalização, ou seja, de uma cultura de relação com o mundo todo, não perdendo a referência à nossa inscrição de origem. Este é o suporte fundante e fundamental para garantir essa relação global equilibrada. A glocalização é precisamente o que garante o ponto de equilíbrio da globalização de rosto humano a partir de uma formação do “homem todo e de todo o homem”, no dizer de Manuel Antunes. Passamos então a explanar os sete vetores pedagógicos orientadores de uma educação para uma globalização de rosto humano, que brotam de sete princípios: Identidade, Amor à Humanidade, Informação, Escolha, Hospitalidade, Solidariedade, Transcendência” (Da globalização à glocalização.pdf, 2016).
Por seu turno, numa linha mais próxima da ecopsicologia e da ecologia humana, Xavier Gravend-Tirole, em “Coabitar. Pensar o comum, com Baptiste Morizot”, afirma que “desde o início da modernidade, o ser humano perdeu a capacidade de distinguir entre habitar um lugar e invadi-lo (ou explorá-lo). Acham que podem fazer qualquer coisa, sendo os únicos seres com direitos na casa comum. Em relação aos seus semelhantes, certamente, mas sem prestar atenção aos outros que não os humanos, a não ser sob o seu aspecto utilitário” (Gravend-Tirole, 2022, p. 199). Apoiado e sustentado na noção de coabitação sugerida por Baptiste Morizot, o referido autor procurará explicar as duas linhas de fractura que, segundo ele, estão na origem desta atitude: “o antropocentrismo, por um lado, e a polarização entre a “natureza” e o ser humano que acredita ele mesmo estar fora dele (ou separado), por outro. Graças aos remédios sugeridos pela ecopsicologia, tento então identificar medidas corretivas para esta deficiência e explorar como o antropocentrismo cristão poderia ser pensado de uma forma menos prejudicial para os vivos, num nível teórico” (Gravend-Tirole, 2022, p. 199).
Encontramos, pois, um crescimento galopante nesta consciencialização e um firme empenho e comprometimento de todos neste processo de construção de uma cultura de rosto humano. As consequências desta mudança trarão a assunção de uma nova cultura de relação com o outro, em que o outro já não é somente um alguém, mas é o próximo que, segundo a visão bíblica, é aquele que me define, me impele a ser mais e melhor, a ser vida na vida de alguém, a ser rosto de Misericórdia. Este projecto e este modelo pode recriar (e deve reconstruir), no mundo de hoje, um novo humanismo que permita edificar uma globalização de rosto humano.