No meio de crises que abalam o mundo no Médio Oriente, na Europa e no Indo-Pacífico, as notícias que chegaram recentemente do Níger podem parecer uma trivialidade. Verdade, as tropas americanas estão a fazer uma retirada enxovalhante enquanto as forças russas entram na mesma base aérea nigerina que acolhe o pessoal dos EUA. E sim, até ao golpe de Estado – de movimentos pró-russos – de Julho passado, o Níger era um exemplo dos esforços da democracia ocidental em África e a base da estratégia antiterrorista do ocidente na região. Hoje, o presidente democraticamente eleito, apoiado pelos americanos, está preso na sua residência oficial e os líderes do golpe estão a trabalhar com o Grupo Wagner da Rússia.
Qual é a verdadeira importância do Níger? Embora seja grande (maior que a Europa central), não tem litoral e é maioritariamente deserto. Tem reservas substanciais de urânio e outros minerais, incluindo ouro, mas nada que não possa ser encontrado noutros locais. Com cerca de 26 milhões de habitantes e um produto interno bruto de cerca de 15 mil milhões de dólares, é um dos países mais pobres e menos desenvolvidos do mundo. Desde que alcançou a independência de França, em 1960, o Níger tem oscilado entre intervalos ineficazes de governo civil e militar.
A maioria dos americanos, se soubesse que o Níger existia, diria: “Deixem-no para Putin”, ou como diria Trump, “Porque raio temos de gastar recursos com estes ‘shithole countries’?”. A maioria dos europeus, muitos dos quais não saberão que o Níger existe, também não compreenderiam a necessidade de haver tropas europeias deslocadas naquele deserto de areia. Em circunstâncias normais, os secretários de Estado dos EUA ou o Alto Representante da UE para os Negócios Estrangeiros e Política de Segurança não passariam muito tempo a pensar no Níger ou nos seus vizinhos. Mas os tempos actuais não são normais.
A jogada de poder da Rússia no Níger faz parte de um padrão mais alargado. Da Líbia à África do Sul, Putin está a capitalizar os erros americanos e ocidentais para adquirir recursos minerais lucrativos, complicar o planeamento da segurança ocidental e aumentar a capacidade do Kremlin para escapar às sanções.
Desde que a Companhia Britânica das Índias Orientais construiu um império a partir das ruínas do poder do Império Mughal, nunca uma empresa mercenária semi-privada teve tanto sucesso como o Grupo Wagner em África. Os operacionais da Wagner tiraram, em grande medida, partido do ódio generalizado contra a França e da incapacidade dos fracos governos apoiados pelo Ocidente para oferecerem segurança, prosperidade ou educação. Os seus operacionais fizeram fortunas em ouro, diamantes e outros minerais para si próprios e para os seus padrinhos do Kremlin, ao mesmo tempo que provocavam humilhações sucessivas ao Ocidente.
Para Putin, os benefícios da sua estratégia para África são claros. As operações da Wagner rendem milhares de milhões de dólares. Parte desse dinheiro vai para a entourage de oligarcas que rodeia Putin, ajudando-o a manter os seus subordinados satisfeitos. Parte desse dinheiro é utilizado para financiar a guerra na Ucrânia. E as ligações da Wagner às operações mineiras e aos governos de toda a África permitem muito branqueamento de capitais e evasão de sanções que ajudam ainda mais Putin a financiar a guerra na Ucrânia e o amedrontamento militar para com os seus vizinhos.
Por que é que o Ocidente tem sido tão infeliz? Em parte, porque esta é uma região do mundo difícil para fazer negócios. A maior parte dos governos são fracos, as lealdades tribais são mais importantes do que as instituições formais, as fronteiras são frouxas e as sociedades civis estão fragmentadas. Além disso, quase toda a gente na região odeia a França, a antiga potência colonial e, tradicionalmente, a força externa mais ativa na região. Mas é também porque o sistema da política externa dos EUA e UE designou a política africana como uma espécie de laboratório para o ativismo dos direitos humanos e a promoção da democracia, que, por mais lírico e cor de rosa que a intenção possa ser, não é isso que aqueles povos intencionam. Querem primeiro que tudo, segurança, saúde pública, desenvolvimento económico e educação, que são, gostemos ou não de o admitir, necessidades prioritárias para que todas as outras se possam desenvolver.
Até há pouco tempo, África tinha pouca importância nos cálculos do capital ocidental ou da burocracia de segurança nacional. Comparada com outras regiões do mundo, África atraía relativamente pouco investimento estrangeiro americano ou europeu e a sua importância para os estrategas militares americanos era menor do que a do Indo-Pacífico, do Médio Oriente e da Europa.
Isto é lamentável, porque o Sahel é um lugar onde as condições para a ascensão sustentável de sociedades democráticas em grande parte não existem, e grande parte da atividade ocidental na região consiste em perseguir objectivos nebulosos de democracia e desenvolvimento que nunca se alcançam. Ignorando uma realidade que se impõe numa região essencial para a segurança europeia, é ali que as migrações com as quais a Europa se confronta têm início, os migrantes que vão gerando quebras de balanço político e instabilidade democrática na Europa com o crescimento das extremas direitas surge precisamente no Sahel. Quem domina o Sahel, domina as migrações, quem domina as migrações domina a instabilidade europeia, é geopolítica barata, mas real. O Níger foi o sexto país da região do Sahel a sofrer um golpe de Estado bem sucedido desde 2020, juntando-se ao Sudão, ao Chad, ao Mali, ao Burkina Faso e à Guiné Conacri, onde todos os regimes antigos eram colaborantes com a Europa e os EUA, e foram todos substituídos por juntas ou governos pró-russos.
Esta é a estratégia de Moscovo e Pequim na sua cavalgada global de combate ao bloco democrático, criar mais uma frente de batalha no sentido de enfraquecer as democracias europeias e norte-americanas. Tanto Putin como Xi sabem que o Sahel tem um grande potencial de desestabilizar a Europa de diversas formas. A região é um dos epicentros globais do terrorismo, onde grupos como Boko Haram e outras ramificações do Daesh proliferam por entre os vazios de poder causados por golpes de Estado, revoltas étnicas, crime organizado e intervenções mercenárias russas, sem tropas europeias ou americanas a manter a segurança destas zonas, nada irá parar uma nova escalada terrorista, bem como uma nova vaga migratória avassaladora, com todas as tragédias políticas que daí resultarão.
É profundamente errado cair na conclusão de que estes tumultos estão demasiado longe das nossas vidas e que estamos livres de qualquer estrago, estes deslocamentos súbitos das placas tectónicas geopolíticas no Sahel são uma bomba em contagem decrescente. A região do Sahel, é uma enorme região entre o Saara e a Savana que se estende do Atlântico ao Mar Vermelho, e alberga dentro de si uma vastidão de países cuja demografia cresce de forma incontrolável, é lá que se registam as maiores taxas de crescimento populacional em todo o mundo. Mergulhar a região no caos dos saques de mercenários Wagner e na proliferação do terrorismo tornará o Sahel num inferno para a sua colossal população.
Veremos na Europa um aumento inacreditável de migrantes da região, uma multiplicação de mortos no Mediterrâneo e de corpos a dar à costa nos países do sul, novas rotas de tráfico humano a surgir, salvamentos e desembarques cada vez mais frequentes nas praias do Algarve, e o regresso do sangue às ruas das nossas cidades, numa nova vaga descontrolada de terrorismo fundamentalista. Com todas as repercussões políticas que estes eventos carregam, criando terreno fértil para a disseminação e crescimento dos movimentos anti-democráticos e enfraquecimento das forças políticas tradicionais, com todos os previsíveis prejuízos para os direitos liberdades e garantias que tomamos diariamente como assegurados.
Três décadas de ajuda ao desenvolvimento, de promoção da democracia e de ativismo em prol dos direitos humanos por parte de diplomatas ocidentais e de funcionários de ONG’s culminaram nas conquistas do Grupo Wagner em África, tal como mais de 20 anos de engenharia social americana não conseguiram afastar os talibãs no Afeganistão.
Ter esperança não é um plano. EUA e Europa precisam de repensar a sua política para África. Enquanto o Ocidente não absorver as lições dos fracassos do passado e planear com um pragmatismo férreo a sua agenda geopolítica, Moscovo e Pequim decidirão o nível de caos com que viveremos no nosso futuro.