O último artigo da professora Patrícia Fernandes lembrou-nos o papel destrutivo que as políticas identitárias exercem sobre a democracia representativa. Contudo, talvez pela referência inicial a Alexander Hamilton, li todo o artigo com uma distinção (que considero muito relevante para o debate) em mente: a distinção entre democracia e república. Na verdade, a própria distinção surge, mais ou menos velada, ao longo do artigo: a professora nota, por exemplo, o quão diferente é a democracia ateniense do sistema republicano americano. Apesar disto, creio que uma digressão sobre estes dois conceitos nos fará entender melhor o problema denunciado pela professora Patrícia Fernandes e, ao mesmo tempo, expandi-lo para outros setores do espectro político.

Uma das coisas que mais me intriga, enquanto estudante de filosofia, é o processo através do qual um dos conceitos mais unanimemente criticados da história do pensamento ocidental se tornou, na cabeça de muitos, a panaceia para os problemas do século XXI. Na verdade, de Platão a Locke, de Aristóteles a Montesquieu, passando por São Tomás e Montaigne, parece haver um acordo tácito sobre as deficiências do regime democrático. Na famosa notação platónica, a democracia é o produto da degeneração da politéia (a república) e era associada à instabilidade política e à demagogia, ao exacerbado.

O curioso é que esta ideia de democracia era amplamente partilhada pelos que são hoje considerados os “pais da democracia moderna”, ou seja, os founding fathers americanos. A professora Patrícia Fernandes nota que Alexander Hamilton foi o primeiro a usar o termo “democracia representativa”, contudo, devemos igualmente notar que é praticamente impossível encontrar, nos textos de George Washington, Thomas Jefferson, John Adams, Patrick Henry e outros, alguma palavra a favor de uma “democracia”. Pelo contrário. Há um medo amplamente difundido de que o projeto revolucionário se concretizasse numa democracia. Em toda a sua obra, Thomas Jefferson cita a palavra “democrata” uma única vez, e como resposta a uma acusação que Hamilton lhe havia feito.

Quer isto dizer que o sentido atual (amplamente positivo) da palavra democracia é extremamente recente e, para além disso, ambíguo. Tratar democracia como sinónimo de “justo” e “bom” é a inversão do uso que a palavra teve por, pelo menos, 23 séculos. Talvez tenha sido essa ambiguidade o estímulo da tirada shakespeariana de Jerónimo de Sousa que, à pergunta “Incomoda-o o facto de a Coreia do Norte não ser uma democracia?”, respondeu: “Eu não fazia essa classificação de ser ou não ser”. A situação pode parecer ridícula, mas espelha um problema real. O PCP vê-se, efetivamente, como um partido que defende a democracia. E, de acordo com a terminologia dos Founding Fathers, o PCP seria um partido “hiperdemocrático”, tal como todos os regimes defendidos pelo mesmo. A Coreia do Norte tem eleições frequentes dentro dos ditames do partido e o próprio fascismo gozava de um modelo plebiscitário com muitas e frequentes eleições. Contudo, contrariamente ao que os Founding Fathers defendiam, nada do que descrevemos está relacionado com a independência institucional, a separação de poderes e, muito menos, com a existência de uma Constituição que tenha como foco justamente impedir o Estado de realizar atos contra aquilo que se consideraram ser verdades “auto-evidentes”: “que todos os homens são criados em equidade, e que receberam de seu Criador certos direitos inalienáveis, dentre os quais estão a vida, a liberdade e a busca da felicidade”. Num sistema plenamente democrático, basta ter 50% + 1 dos votos para que uma decisão se torne lei e poder, pouco importa se essa maioria tenha decidido espoliar a minoria. Já numa república, o processo democrático é usado para decisões pontuais e jamais se deve sobrepor ao respeito pela gestão da coisa pública.

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Norberto Bobbio disse, certa vez, que os problemas da democracia apenas se resolvem com mais democracia. Ora, é exatamente contra esta visão que as repúblicas modernas foram construídas. Os problemas da democracia são resolvidos limitando-a, assegurando que não podemos viver uma “tirania de maioria”. Devemos entender que, mesmo que hoje usemos os conceitos de politéia (república) e democracia (ou oclocracia) como sinónimos, estes possuem um referencial maior em Roma do que na Grécia. As inúmeras “defesas” da democracia que ignoram os princípios republicanos são meras defesas de uma forma singular de tirania: a tirania da maioria. Mesmo com a maioria de votos, um governante não pode exigir que o Estado censure a imprensa, a liberdade de expressão, que estabeleça uma religião oficial, etc. A própria ideia de Constituição transborda republicanismo, e tem muito pouco de democrática.

Uma visão muito mais sã que a de Bobbio (que parece ter essa visão de democracia como uma panaceia) seria aquela partilhada por pensadores como Friedrich Hayek, Michael Oakeshott e até Robert Nozick que, com todas as suas discordâncias, entendem que a vantagem da democracia é epistemológica: é o regime no qual o item mais importante é a transmissão de conhecimento para todos os níveis da sociedade, e fá-lo da melhor maneira que conhecemos até hoje. Contudo, as suas virtudes não devem ser deificadas.

Esta digressão pode parecer pueril, um mero devaneio conceptual, mas creio que é muito relevante para entendermos, por um lado, o problema da esquerda identitária e, por outro, da direita plebiscitária. A nossa incompreensão do sistema republicano ressurge sempre que, por exemplo, há uma eleição nos EUA e o presidente com mais votos não vence as eleições, tal como aconteceu com Donald Trump em 2016, e parece existir uma necessidade generalizada de mencionar que Trump “perdeu no voto popular”. Ora, o colégio eleitoral americano é uma instituição republicana que serve exatamente para evitar a tirania da maioria. Sem o Colégio Eleitoral, as eleições de um país com 300 milhões de habitantes seriam decididas meramente por Nova York, Miami e Los Angeles. E é esse robusto sistema republicano que impede, inclusivamente, que lunáticos na Casa Branca abusem do seu poder.

É contra esse sistema que se insurgem tanto a esquerda identitária quanto a direita plebiscitária. O desdém que a esquerda identitária tem pelo sistema republicano já foi bem explorado pela professora Patrícia Fernandes. Partidos como o Livre condicionam a representatividade (um fator de distanciamento entre representantes e representados que, mais uma vez, nos afasta da democracia plena) “à pertença a uma identidade grupal (seja ela étnica, racial, sexual, de género, etc)” e procuram a “ destruição da ideia de bem comum e da possibilidade de prossecução de um projeto coletivo” ao percecionar “a política a partir de lutas seccionais”.

Por outro lado, encontramos o mesmo desdém pelo sistema republicano naquilo a que chamo direita plebiscitária. O melhor exemplo desta talvez seja o atual governo Bolsonaro que, convocando manifestações governistas, tenta instituir uma cultura plebiscitária que desqualifica o Congresso e outras instituições, numa tentativa de criar um canal de comunicação direta entre líder carismático e povo. Na verdade, o próprio Brexit e outros referendos em matéria de estado buscam entrar nesse registo de democracia direta. O que a direita plebiscitária se esquece é que o feitiço se pode facilmente virar contra o feiticeiro. Num mundo de referendos, não há estabilidade. A grande virtude republicana é impedir que o próprio jogo de feitiço e feiticeiro se torne uma realidade política.

Por fim, resta perguntar: e Portugal? Somos uma república consolidada, com instituições e poderes independentes? Acho que a melhor maneira de responder a essa questão é com mais perguntas. Violação da separação de poderes através da proteção dos elementos dos poderes legislativo e executivo pelo poder judicial, inutilizando o Supremo Tribunal de Justiça e a Procuradoria Geral da República é um ato republicano? Dominar politicamente um banco estatal é republicano? Utilizar fundos obtidos por desvios ou subornos para financiamento da campanha do partido é republicano? Controlo da economia através do conluio com grupos económicos e da infiltração de homens de confiança nos mesmos é republicano? O recente desrespeito pelos votos dos emigrantes é republicano? No fundo, todas estas questões já foram respondidas por Jorge Coelho: “Quem se mete com o PS, leva!” e, quando este espírito impera, há muito pouco de republicano. As palavras de Jorge Coelho são o reflexo de um regime que não está disposto a partilhar poder, mas quer poder tudo, sem escrutínio, dúvida ou sanção. Um regime criado pelo partido para o partido. E um regime que cria um Portugal, infelizmente, cada vez mais democrático.