Terá sido Alexander Hamilton o primeiro a usar o termo “democracia representativa” numa carta de 1777, revelando a tentativa dos founding fathers de encontrar uma arquitetura política que permitisse concretizar os ideais de soberania popular que floresceram com as teorias contratualistas. Se esta ideia voltava a aproximar a Europa do espírito dos governos populares da Antiguidade, a verdade é que os intelectuais iluministas do século XVIII estavam muito longe de valorizar o governo de participação direta que caracterizava o regime ateniense ou as instituições populares da república romana. A democracia estava associada a instabilidade política, ao governo das turbas irracionais, à demagogia, ao exacerbamento das paixões – encontrando-se, por isso, muito distante da racionalidade pública que os modernos acreditavam ter atingido.

O governo popular moderno exigia um novo regime político e será a criatividade intelectual dos primeiros liberais a criar o mecanismo de representação, que dá forma ao que hoje designamos por democracia liberal. De acordo com esse modelo liberal, os representantes usufruem de um elevado grau de autonomia em relação aos seus eleitores, não devendo estar condicionados pelas suas paixões e desejos, embora estejam sujeitos à sua avaliação através de eleições regulares. Mas trata-se, de modo essencial, de representatividade política: os deputados não se representam a si mesmos, antes cumprem uma função de mediação entre o exercício do poder e os interesses dos constituintes. E é nesta função de mediação que os partidos políticos se tornam relevantes: eles servem como mecanismo de agregação de interesses tendo em vista o bem comum.

Neste sentido, a representação deve ser vista como um exercício de advocacia: ainda que os representantes estejam ligados aos interesses dos representados, a sua função é introduzir o distanciamento e a moderação necessários ao exercício da racionalidade pública que caracteriza o paradigma liberal. Tal como apreciamos o valor dos advogados por negociarem divórcios e partilhas sem se deixarem envolver nos conflitos naturalmente emotivos das partes, esperamos o mesmo de um deputado: que se emancipe da situação concreta por forma a permitir o processo deliberativo. Este fator de distanciamento é fundamental para o exercício da racionalidade pública: é ele que permite, simultaneamente, o reconhecimento do desacordo e a possibilidade de acordo, o mesmo é dizer, o espírito liberal do dissenso que possibilita o consenso em vista do bem comum.

Ora, é este conceito liberal de representação que é ameaçado pela chamada identity politics quando faz condicionar a representatividade à pertença a uma identidade grupal (seja ela étnica, racial, sexual, de género, etc.). Nos Estados Unidos, onde as políticas identitárias nasceram com a New Left, as reações negativas têm vindo a aumentar, com destaque para as posições de Mark Lilla e Francis Fukuyama. As suas críticas remetem para a destruição da ideia de bem comum e da possibilidade de prossecução de um projeto coletivo: quando se perceciona a política a partir de lutas seccionais, espartilha-se o sentido do coletivo e destrói-se a solidariedade comunitária. É também a posição de Amy Chua quando recorda os ideais de Martin Luther King que capturaram a imaginação norte-americana durante décadas: eles transcendiam a divisão entre grupos e referiam-se ao sonho de uma América que deveria existir para todos os cidadãos, independentemente da cor da pele.

Há, no entanto, outro sentido em que as políticas identitárias ameaçam radicalmente o modelo liberal: ao traduzirem-se na eleição de deputados identitários, destroem a função essencial de mediação que deveria ser garantida pelo mecanismo de representação. Como percebeu John Locke ao defender a passagem do estado de natureza para o estado civil, a dificuldade reside na tarefa hercúlea de se conseguir ser imparcial em causa própria. E o problema é que, sentindo-se eleitos em função da pertença a uma identidade específica e só em função disso, esses deputados subvertem a própria ideia de distanciamento como garante da racionalidade pública.

O que parece estar a acontecer por todo o mundo ocidental – não constituindo Portugal uma exceção com a recente transformação do Livre em partido identitário – é, desta forma, a pessoalização da política, com a consequência inevitável de convocarmos para a esfera pública as nossas angústias, ódios e ressentimentos pessoais. E ao confundir representante e representado, os deputados identitários destroem a possibilidade de dissenso, a ideia de racionalidade pública e a garantia de uma deliberação pública. Constituem, com isso, uma ameaça séria às noções fundamentais que deram forma ao paradigma liberal, fazendo-nos regressar às fragilidades que marcaram o período de decadência do regime democrático da antiguidade.

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