Quando um povo tem uma história assente num Estado-nação precoce e o seu país tem uma existência de nove séculos ininterruptos, tendo sobrevivido intacto ao único período em que esteve sujeito a uma monarquia estrangeira, faz sentido perguntar se essa existência teve um impacto relevante na História. No caso de Portugal, a resposta é obviamente afirmativa, pois os portugueses foram os responsáveis pelo início da globalização, através dos Descobrimentos.
A percepção das consequências revolucionárias das navegações foi manifestada logo pelos seus primeiros protagonistas. Logo na Crónica da Guiné, Zurara utiliza dúzias de vezes a palavra “nunca”, expressão que assumia desde logo a consciência do despegamento em relação ao Passado, e em 1449, já o humanista Piero Poggio Bracciolini escrevia ao infante D. Henrique, louvando-o por ter sido o inventor dessas navegações que mudavam a visão do mundo.
A cada avanço das caravelas repetiam-se os mútuos descobrimentos, para usar uma expressão feliz, que vi no Museu del Oro, em Bogotá. Com efeito, sempre que os navegadores chegavam a uma nova terra descobriam e eram descobertos. Cada povo dessas paragens ultramarinas, como é óbvio, conhecia-se a si mesmo, mas desconhecia quase todo o resto do mundo, pelo que a chegada dos portugueses representou sempre uma novidade absoluta. Por isso, os relatos assinalam que o número de curiosos que os vinham ver à praia crescia de dia para dia, fosse em África, fosse na América ou na Ásia. Populações do Senegal cuspiram no braço de Cadamosto e esfregaram-no para terem a certeza de que havia pessoas de pele clara; ou Oda Nobunaga, senhor da guerra japonês, pediu que despissem a camisa de um negro para ter a certeza de que não era uma pessoa com a cara pintada; ou uma multidão reuniu-se à porta da casa onde pernoitou o padre Francisco Cabral, em Gifu, porque correra voz de que esse estrangeiro tinha quatro olhos, e assim esses japoneses viram pela primeira vez um par de óculos.
No século XV, nenhum ser humano tinha uma noção sequer aproximada da configuração da Terra, da proporção da superfície que estava coberta pelos mares ou por terras emersas, da silhueta dos continentes e dos oceanos ou mesmo do seu número. Tudo mudou ao longo do século XVI, quando a representação da Terra se foi aperfeiçoando, devido à acumulação de novidades obtidas pelos exploradores. Estas notícias recolhidas pelos europeus espalharam-se pelo mundo, pois no final desse século já chineses e japoneses também dispunham de planisférios feitos por si, a partir dos que lhes tinham sido dados pelos portugueses.
Falar dos Descobrimentos não é falar de um processo unilateral, nem sequer apenas bilateral. É certo que os portugueses e os demais europeus que os seguiram, estabeleceram relações directas com os povos dos locais onde desembarcavam e deram-lhes a conhecer objectos, animais, plantas e produtos desconhecidos, e que trouxeram de volta desses lugares, igualmente, informações e narrativas, objectos, animais, plantas e produtos. Além disso, porém, os navegadores puseram essa panóplia de novidades a circular em todas as direcções, o que tornou os portugueses, por exemplo, nos introdutores do pavão (originário da Índia) no Japão, do coqueiro (originário do Índico) no Atlântico, do cajueiro (originário da América) na Índia, dos cauris (originários das Maldivas) na África Ocidental, do consumo do tabaco (originário da América) em África, ou da sífilis (originária da América) na Ásia.
De facto, também os vírus e as bactérias se espalharam pelo mundo, apanhando desprevenidos milhões de indivíduos, repetindo à escala planetária, o que já ocorrera dúzias de vezes no espaço mais restrito da Eurásia, de que a peste negra de meados do século XIV é apenas o episódio mais impressionante por ter matado mais de um terço da população europeia em poucos anos.
Mapa mundi (1583), de Sebastião Lopes, assinalando a presença de Portugal e de Castela no mundo.
Foi precisamente pelo facto de os Descobrimentos terem sido um processo global, que, em setembro de 2022, fui convidado para proferir em Nova Delhi a conferência inaugural de um congresso sobre as relações entre a Índia e o Japão. os organizadores entenderam que devia ser um português a evocar e explicar o primeiro encontro indo-nipónico (quando uns e outros se descobriram mutuamente) que sucedeu em meados do século XVI na sequência da chegada dos primeiros aventureiros lusos ao Japão.
Os Descobrimentos abriram, pois, uma nova era na relação da humanidade com o planeta. Foi a maior revolução desde o Neolítico, quando os humanos haviam domesticado as plantas e os animais. Agora, puseram-nos a circular pelo globo, alterando paisagens e economias, diversificando consumos, generalizando tecnologias, como as das armas de fogo, e criando as condições que viriam a gerar a Revolução Industrial, antecedida pela Revolução Agrícola na Europa (que libertou mão-de-obra) e pela planetarização dos mercados. A Europa, por exemplo, passou a adquirir regularmente (inicialmente pela via de Lisboa) tapetes confecionados propositadamente para si por artesãos persas e turcos ou peças de porcelana fabricadas por operários chineses.
A circulação dos humanos pelo planeta cresceu vertiginosamente. No caso da armada de Pedro Álvares Cabral, em 1500, seguiam a bordo europeus de várias nações, africanos de várias regiões e também asiáticos, que haviam acompanhado Vasco da Gama no seu regresso a Portugal em 1498-1499. O mundo estava em movimento e o milenar trato intercontinental de pessoas escravizadas, conheceu um novo episódio com a migração forçada de milhões de africanos para a América e a Europa entre os séculos XVI e XIX.
A globalização desencadeada pelos Descobrimentos também gerou conflitos, matanças e destruição de civilizações em diversos pontos do globo, mas a chave do sucesso da fixação dos portugueses em todos os continentes assentou na sua capacidade de forjar alianças: as conquistas realizadas no Brasil e na Ásia no século XVI só foram possíveis com o apoio de populações indígenas que viram na chegada dos portugueses uma oportunidade para derrotarem inimigos de longa data. Assim sucedeu logo em 1498, quando o sultão de Melinde prestou apoio à armada de Vasco da Gama, ao contrário de todos os outros chefes muçulmanos da África Oriental; ou em 1500, quando o rei de Cochim convidou Pedro Álvares Cabral a visitá-lo e a estabelecer uma aliança mercantil e militar que garantia o comércio das especiarias e a guerra com Calecute, velho inimigo de Cochim. Foi também com base em alianças com chefes africanos que os portugueses e os outros europeus carregaram os seus navios com cativos que eles lhes vendiam. O mundo era violento antes dos Descobrimentos e continuou a sê-lo depois dos Descobrimentos, pois não há povos inocentes na História.
Passados quase seis séculos sobre o início dos Descobrimentos, a diplomacia portuguesa continua a usar essa memória como trunfo nos corredores dos organismos internacionais e existem estátuas e monumentos aos agentes dos Descobrimentos, ou edifícios erguidos pelos portugueses que hoje são classificados como Património Mundial pela Unesco, em países como a África do Sul, Angola, Bahrain, Brasil, Cabo Verde, China, Índia, Japão, Malásia, Moçambique, Namíbia, Quénia, São Tomé e Príncipe, Tanzânia, Timor-Leste ou o Uruguai – uma memória viva, que recorda o papel incontornável dos portugueses na História desses países.
A relevância dos portugueses na História não apaga o seu rasto de violência pelo mundo, mas esse rasto, por sua vez, não elimina a memória do seu contributo crucial para a criação da sociedade mundial contemporânea, nem impede que os Descobrimentos sejam olhados com respeito e admiração em todas as partes do mundo.
[Os artigos da série Portugal 900 Anos são uma colaboração semanal da Sociedade Histórica da Independência de Portugal.]