Talvez o título do artigo o tenha trazido até aqui ao engano. Esclareço já: não irei escrever sobre qualquer tipo de material explosivo, mas antes de algo mais construtivo – o armazenamento de energia elétrica e, em particular, a bombagem hidroelétrica.
O contexto atual do mercado de eletricidade tem revelado que o armazenamento de energia elétrica é uma necessidade crescente. Estes dias – de disponibilidade extraordinária de fontes renováveis e, portanto, preço baixo no mercado grossista – são uma boa janela de observação de um sistema elétrico futuro. O que sobressai? Que o armazenamento, a par com a infraestrutura de redes, deverá ser um dos bottlenecks tecnológicos da transição energética. Apenas o armazenamento de energia elétrica permitirá uma maior penetração de energia renovável (intermitente) no mix energético – como, aliás, refere a UE.
A bombagem hídrica, muitas vezes esquecida ou secundarizada nos planos nacionais (e mesmo em iniciativas políticas europeias, como o Pacto Europeu para o Clima, Fit for 55 e RePowerEU), pode ter um papel central no sucesso de um sistema mais descarbonizado. Há cinco razões centrais para isso:
Escala: A bombagem hídrica tem capacidade para armazenar grandes quantidades de energia, permitindo absorver eletricidade renovável em períodos de excesso e disponibilizá-la em picos de procura. É capaz de oferecer capacidade de armazenamento a nível diário, semanal ou a mais longo prazo.
Tecnologia dominada e com potencial: A bombagem hídrica representa atualmente cerca de 96% da capacidade global de armazenamento de energia e 99% do volume global de energia armazenada. Na Europa, apesar dos 44 GW de capacidade instalada de bombagem (um quarto da capacidade mundial), o potencial teórico é 3 vezes superior – com um potencial de armazenamento sustentável de quase 30 TWh (em albufeiras já existentes).
Eficiência: A bombagem hídrica tem níveis de eficiência elevados (>90% na geração, e mais de 80% no ciclo global), permitindo perdas de energia reduzidas durante cada ciclo.
Fiabilidade do sistema: A geração hídrica tem uma grande massa girante (grande inércia), sendo um elemento importante para manter a rede elétrica estável (pelos chamados serviços auxiliares) – veja-se o excelente exemplo do XFLEX HYDRO. Além de permitir a resposta a flutuações de procura, evitando apagões, a energia hídrica fornece energia de reserva ou, se necessário, é capaz de realizar o blackstart do sistema (um complemento indispensável, por exemplo, a centrais nucleares).
Emissões de CO2: Numa análise de ciclo de vida (a única perspetiva ambientalmente aceitável), percebemos que a pegada de carbono da bombagem hídrica é comummente menor que outras tecnologias de armazenamento. Embora seja algo muito project-specific (e se devam acautelar estudos independentes), a bombagem hídrica tende a ser, por exemplo, mais ecológica que as baterias de iões de lítio – não implicando a extração de minerais raros e/ou uso de materiais menos sustentáveis. Além disso, num visão euro-centrada e face ao atual contexto geopolítico, tem uma cadeia de abastecimento regional.
Face às crescentes necessidades do sistema elétrico, a energia hidroelétrica poderá ser um eixo central na construção de uma infraestrutura mais segura e descarbonizada. O armazenamento hidroelétrico, em específico, poderá garantir a gestão da energia produzida, com capacidade de colocação de energia em períodos de maior procura e/ou menor recurso e capacidade de balanceamento diário, semanal ou mesmo sazonal e evitando o seu desperdício (curtailment). Em mercados com um contexto similar, como a Austrália, esta aposta é visível, mas também em Espanha, com quem partilhamos o mercado de eletricidade, começam a surgir interessados.
Na verdade, muito particularmente em Portugal, poderemos já atualmente perceber esta importância do armazenamento. A existência de aproveitamentos hidroelétricos com capacidade de bombagem já permitiu a grande penetração de energia eólica no sistema nas últimas duas décadas. No ano passado, 2 879 GWh de energia foram produzidos a partir de bombagem hídrica (6,5% do total da produção), com um rendimento do ciclo completo de aproximadamente 84%. Esta produção deu-se em momentos de procura elevada e/ou escassez de recurso renovável, logo, a sua ausência seria provavelmente colmatada com produção de eletricidade a partir de gás natural (o mal menor entre as fontes fósseis). Se assim fosse, tomando os fatores de emissão de 2023, teriam sido emitidas mais de um milhão de toneladas de CO2 equivalente (1 105 536 tCO2eq) – o equivalente a 39% da capacidade de remoção líquida anual da floresta portuguesa.
Além disso, após dois anos que nos deixaram sensibilizados para a escassez de água e a necessidade de garantir a sua gestão eficiente e integrada, sabemos que estes 2 879 GWh de energia precisariam de mais de dois mil milhões de metros cúbicos de água para ser produzidos numa central hidroelétrica convencional, considerando a central portuguesa com melhor rácio energia/caudal. Assim, a hidroeletricidade (por usar o recurso sem o consumir) e, em particular, a bombagem hídrica (pelo funcionamento em “circuito fechado”) devem ser também enquadrados numa resposta integrada aos desafios da água (para lá de muitos outros, como os indicados pela eurodeputada Lídia Pereira – e onde, quase sintomaticamente, não são explícitos).
Olhando esta tecnologia como vetor importante para a descarbonização do sector da eletricidade, como garantia de uma transição energética fiável e segura ou como parte de uma resposta resiliente aos efeitos das alterações climáticas, percebemos que tem uma importância maior do que a atenção que lhe é dada.
Respostas e incentivos, é certo, devem ser desenhados de modo tecnologicamente agnóstico. E, por isso, devemos garantir um desenho sólido de contexto para que as soluções se desenvolvam. Esse contexto acordará este gigante adormecido.