No século VIII aC., Homero abria a Ilíada e a Odisseia com as palavras Canta, ó deusa. E desde então a musa jamais suspendeu o canto. Quinhentos anos depois, quotidiano e despojado, Apolónio de Rodes pede à musa permanece junto a mim. E não invoca a deusa logo no primeiro verso do poema; fá-lo a meio, no início do terceiro dos quatro cantos que constituem a Argonáutica, para depois, no início do Canto IV, quando a paixão entre Medeia e Jasão se tornou já uma união indissolúvel, Apolónio se render ao poder do amor que deixou o seu espírito “sem palavras” e pede à musa que escreva por ele, pois, turbado diante do sortilégio de ladeiras matinais, ficou mudo – o mais belo dos paradoxos, a paixão que, lábios nos lábios, tudo silencia. Que palavra expressa o silêncio?
Muito tempo se passou entre os dois poetas, três épocas na verdade: da era arcaica passámos à helenística e já não estamos na Grécia, mas na Biblioteca de Alexandria, de que Apolónio é o ínclito diretor. Entre ambos os períodos, inescapável já, correra a era clássica de Sófocles e Eurípides, de Péricles e Platão, que já eram passado, sim, mas que continuavam a ser memória intensa e necessária. Acima de tudo, muita poesia fluíra desde então, muitas maneiras de tactear o mistério e de, em verso, domesticar armários e gavetas, balbuciar o grito, o sussurro, o murmúrio, o encanto do indizível.
Apolónio invoca Erato, a musa da poesia amorosa, cujo nome deriva do de Eros, para que o acompanhe na narração daquela força invencível, que vinculará a vida de um grego e de uma estrangeira e com a qual Jasão superará ileso as provas impostas pelo Rei Eetes e alcançará o velo de ouro: a força do amor. Eis o que escreve Apolónio, com a simplicidade estilística que as grandes coisas exigem: apenas “Μηδείης ὑπ’ἔρωτι”, (graças ao amor de Medeia), poderá a viagem dos Argonautas cumprir-se.
A de Medeia e Jasão é a mais famosa história de amor, doçura, agonia, paixão e dor infinita da Antiguidade, e talvez até do nosso presente também.
Medeia era apenas uma “menina” – assim a define o poeta – que nada esperava enquanto, despreocupada, vivia, com os seus irmãos, no palácio real nas margens do Fásis. Se contemplava o mar pela tarde, era pela maravilha do infinito ou pelo prazer de imaginar as cores que o ocaso poderia trazer. Não esperava que alguém arribasse àquele porto. Muito menos vir a apaixonar-se. Jamais pensara que um rapaz como Jasão, vindo de um país distante, cruzaria uma manhã a sua soleira e se tornaria o homem da sua vida.
E não foi assim com todos nós? Um encontro casual num determinado dia – dia sem ocaso naquele nosso calendário particular, aquele em que o tempo tem um valor absolutamente pessoal, diferente do que nos é imposto pela sucessão implacável das semanas, dos meses, dos anos; um rosto ao longe, um gesto peculiar, uma forma particular de cruzar os braços e esfregar o nariz, talvez nem sequer um nome; a vida de um outro que, de repente, entra na nossa e que, com o seu gracioso despejo escancara as nossas portadas e lança sobre os nossos dormentes soalhos a luz de uma verdade inquieta; a impossibilidade de prever o que acontece, a inquietude de desejar que algo aconteça; um homem, uma mulher, que não conhecíamos, e que imediatamente reconhecemos.
Não é por acaso que “enamorar-se” é um verbo reflexivo; antes de qualquer outra coisa, produz efeitos em nós ou, melhor, dentro de nós, os únicos a quem é consentido conhecê-los.
“Enamorar-se” não tem tempo nem duração; é aquele instante inesperado, o único capaz de transformar o rumo de tudo, que Platão, no seu Parménides, definiu como ἐξαίφνης (exaíphnēs); acontece “sem avisar e alegremente”. Não um momento como tantos outros, compreendidos na sua duração, mas um momento súbito e fugaz, capaz de mudar aquele que o vivencia e torná-lo diferente de si mesmo e de como foi até o tempo começar.
O que distingue amar de enamorar-se é aquela pequena partícula in (transformada em en em português) que está no princípio. Parece irrelevante, mas faz toda a diferença: in é, em latim, a preposição com que se constrói sintaticamente o complemento de movimento, se seguido de acusativo, mas também o de lugar, se seguido de ablativo.
Talvez o prefixo encontrado na palavra enamorar-se não denuncie nem um nem outro. No acto de “despertar o amor em alguém”, a preposição in poderá ser explicada por um antigo locativo, mais tecnicamente ainda por um complemento ilativo, que indica entrada, penetração num lugar. Eis o sentido preciso de enamorar-se: caminho, tensão em relação ao outro e simultaneamente permissão para que entre em nós; naquele entretanto em que, não havendo senão palavras e olhares, vamos abrindo espaço para receber o outro num dentro onde, acolhendo-o, novo me recebo.
Enquanto Medeia caminhava pelos jardins de sua casa, rodeada de “trepadeiras muito altas que prosperavam com os seus caramanchões de folhas verdes”, invisível, através do ar luminoso, chegou Eros, ansioso por atirar as suas flechas. A toda velocidade, escondido sob a arquitrave do tecto, preparou o arco e tirou da aljava o mais poderoso e doloroso dardo de amor que já existiu. O que ele deixou no palácio foi um instante. “Sem avisar.”
Enquanto os lenhadores cortavam os toros, os cozinheiros preparavam o almoço, as servas aqueciam a água, no meio da indiferença de uma multidão atarefada com o curso de um dia banal, o de Medeia foi subitamente interrompido: olhava Jasão com um brilho nos olhos; uma inexplicável ânsia encheu o seu coração, já não se lembrava de mais nada, nem de quem era, nem do que deveria fazer; filha ajuizada e de espírito sensato, esqueceu tudo o que tinha sido antes daquele momento.
De Helena e Páris, de Dante e Beatriz, de Orlando enamorado por Angélica até Romeu e Julieta – todos conhecemos o destino. Diante de uma grande história de amor, perguntamo-nos logo como é que acaba, quando verdadeiramente importante é o relâmpago – discreto como uma preposição, singelo como um olá – que ilumina os inícios.
“Sem avisar e com alegria”, Medeia enamorou-se. A vida pode começar.