Não é uma bizarria a exigência do Presidente da República no que toca aos sem abrigo, na análise que fez sobre o Plano de Ação 2019-2020 da Estratégia Nacional para a Integração de Pessoas em Situação de Sem-Abrigo. Esta exigência não pode ser tida apenas como o capricho de quem já fez ou faz voluntariado nesse campo, pois é a Constituição, assente na dignidade da pessoa humana, que impõe que o Estado assuma como dever de justiça o cuidado pelos mais pobres.
Podemos até dizer que o reconhecimento de um mínimo existencial em Portugal, ligado com a adoção, primeiro, do rendimento mínimo garantido e, depois, do rendimento social de inserção, confirmou este entendimento, passando por cima do facto de a Constituição não ter uma norma expressa neste sentido. Recorda-se que no Acórdão n.º 509/2002, os juízes do Tribunal Constitucional não se coibiram de ordenar diretamente despesa pública ao Estado, a partir do texto constitucional, retirando diretamente quer do princípio da dignidade da pessoa humana, quer da ideia de Estado social em que se funda a despesa pública, a ideia de prestações estaduais, “que permitam uma existência autodeterminada, sem o que a pessoa, [seria] obrigada a viver em condições de penúria extrema”.
Este reconhecimento, embora afirmado jurisprudencialmente em Portugal apenas no início do século XXI espelha um consenso existente desde o século XVIII: o auxílio dado aos mais pobres pelo Estado é melhor do que sujeitá-los à caridade individual e à esmola. A esmola traz problemas associados à corrupção moral, à inferiorização daqueles que estão dependentes da ajuda e à dependência incerta do coração e temperamento das pessoas.
A esta luz deveria até ser cristalino que o dever de assegurar uma vida minimamente condigna aos que mais precisam deve ser prioritário para o Estado. Este dever corresponde ao conteúdo mínimo dos direitos fundamentais previstos na Constituição: de que serve ter uma lista tão longa de direitos fundamentais sem garantia de que todos os cidadãos podem gozar deles?
Assim sendo, antes de se comprometer com qualquer outra despesa, o Estado deveria prover a estas necessidades. Ao construir o Orçamento sem esta base, o Estado faz o contrário do que deveria. Constrói o edifício começando pelo telhado, sem se preocupar com os seus alicerces, ou seja, com as pessoas que o sustentam e justificam a sua existência.
Entregue aos seus preconceitos e medos contra os mais pobres, a sociedade vai desculpando a inércia do Governo, invocando os gastos que este programa implica ou invocando que a subsidiação das necessidades básicas dos mais pobres constitui um desincentivo à produção e correlativamente um incentivo à preguiça ou até uma subversão às regras do funcionamento eficiente do mercado.
Ao não se comprometer com nenhum prazo nem com objetivos concretos em relação aos sem abrigo, o Governo deixa bem patente que continua a encarar esse investimento como uma esmola resultante daquilo que sobeja das folgas orçamentais. E esta forma de atuar deveria preocupar-nos a todos.
Ao contrário do que possamos pensar, a distância que nos separa dos mais pobres não é grande. Assentando a subsistência da generalidade das pessoas no rendimento do trabalho, basta que este falte para que se fique numa situação de pobreza. Embora não pareça, a causa dos mais pobres e sem abrigo deveria ser a causa mais mobilizadora da sociedade, pensando nos apoios que todos gostaríamos de ter se estivéssemos numa situação semelhante. Numa sociedade assente na dignidade da pessoa humana deveria haver um consenso quer sobre o igual valor e dignidade de todos, quer sobre o facto de haver circunstâncias que nenhuma pessoa deveria suportar.
O comprometimento dos governos com esta estratégia para a integração de pessoas em situação de sem abrigo deveria ser o barómetro do comprometimento para com os seus cidadãos. Sem dar garantias de que não deixa ninguém para trás (e de que, obviamente, nunca nos deixará a nós para trás), devemos desconfiar das intenções deste ou de qualquer governo que apenas nos trata como cidadãos de pleno direito quando nos vem chamar para pagar impostos e não se compromete em assegurar o acesso a uma cidadania de pleno direito, quando nos encontramos numa situação de extrema dificuldade.
Professora de Direito na Universidade Católica Portuguesa