Dizem que o Estado de Emergência não suspendeu a democracia, mas a proposta de Lei do Governo que estabelece um regime excecional para as prisões, no âmbito da pandemia covid-19, discutida e seguramente aprovada esta quarta-feira na Assembleia da República, pode constituir um grave atentado aos direitos, liberdades e garantias dos portugueses numa altura em que se comemora 46 anos da Revolução dos Cravos. E pode causar grandes complicações aos familiares dos reclusos, e aos próprios reclusos.

A questão é simples. Para facilitar, ou simplificar, a aplicação da iniciativa legislativa, a proposta de Lei exclui o Tribunal, o único Poder que, em si mesmo, é autónomo e independente. Ou seja, o Tribunal de Execução de Penas (TEP), a quem a Lei Fundamental confere o poder de gerir a vida dos reclusos com processos transitados em julgado, e, nesse enquadramento, a quem cabe a responsabilidade de decidir sobre quase tudo, nomeadamente o regime em que cumprem pena, a autorização de saídas precárias, a liberdade condicional, e muito mais, é excluído de uma iniciativa legislativa que prevê o perdão de penas até dois anos de prisão, um regime especial de indulto, a antecipação da liberdade condicional e saídas administrativas. Medida que pode abranger dois mil reclusos, com um impacto social muito relevante.

Então – perguntam – se o TEP é excluído da iniciativa, quem vai controlar e decidir sobre os beneficiários da Lei? Bom, segundo a Proposta hoje em debate, é ao Diretor-geral da Reinserção e Serviços Prisionais a quem cabe a competência para indicar quais os reclusos enquadráveis na “Lei da Covid Penal”.

Mas, naturalmente, o Diretor-geral não conhece os reclusos. Claro que não! Por isso, a Proposta prevê também que a competência seja delegada nos subdiretores-gerais. Mas, também estes conhecem mal o interior dos 49 Estabelecimentos Prisionais (EP) espalhados pelo País. Assim sendo, solicitarão a ajuda dos diretores dos EP’s. Estes, contudo, poderão evocar dificuldades em possuir uma boa perceção sobre quais os que se comportam melhor ou pior, porque um recluso indisciplinado será, seguramente, contraindicado para beneficiar da Lei. Então, em última instância, quem decide? Eventualmente, será o chefe de guardas que assumirá a responsabilidade de optar sobre a liberdade de uma pessoa. Responsabilidade que em democracia cabe única e exclusivamente a um Tribunal que faz Justiça em nome do Povo. Neste caso, um chefe de guardas poderá ter o poder de um Tribunal, ou seja, de fazer Justiça pelo seu próprio juízo em nome do Povo. Eu sei que não se irão aproveitar desse poder, naturalmente. Como sei, também, que não se deixarão pressionar pelos chefes dos gangues que para lá das grades impõem a autoridade. No interior das alas há um submundo, com “leis” próprias.

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Isto quase parece irreal, mas não é. De facto, a Proposta não prevê, sequer, que se elabore um relatório social para ponderar a realidade socioeconómica do recluso candidato. Sem um relatório social atualizado não se saberá se possui retaguarda familiar, se a família usufrui de condições para o receber, se terá dinheiro para comer. Recordo que numa das amnistias dos anos 90, os serviços prisionais entregavam dinheiro aos reclusos para subsistirem nos primeiros 15 dias. Faziam-no porque conheciam a realidade da pessoa e das famílias. Hoje, isso não acontece. A reinserção está depauperada.

Também é inexistente na Proposta a obrigatoriedade da realização de um Conselho Técnico para avaliação do recluso, com a presença dos magistrados do TEP, diretor do EP, técnicos de reinserção social e guardas, cuja reunião está prevista no Código de Execução de Penas (CEP) sempre que haja questões importantes a decidir acerca do Processo Individual de Reeducação de cada um. Ou seja, a Covid-19 transformou, de repente, o Diretor-geral de Reinserção e Serviços Prisionais num Luís XIV: “O Estado sou eu!”. Mas como não pode estar em todo o lado, um chefe de guardas pode ser um Luís XIV.

Para começar a concluir, temos quatro reflexões. A primeira: estranho silêncio dos magistrados sobre esta matéria. Talvez não queriam ter trabalho, presumo. Não sei! Ou talvez sejam indiferentes a este Estado de coisas.

Segundo, compreendo que se evitem os relatórios sociais. Também não há quem os faça. Para cerca de 13 mil reclusos existem nos 49 EP’s 222 Técnicos de Reeducação, sendo que não cabe a estes elaborar o relatório social relativo às famílias dos reclusos. Esta responsabilidade está atribuída aos Técnicos Superiores de Reinserção Social que no total somam 480, mas que, além dos EP’s, têm sobre os seus ombros o acompanhamento de mais de 20 mil indivíduos que cumprem medidas não privativas de liberdade. Ou seja, não têm tempo para trabalhar na reinserção. O que fazem – e para mais não têm tempo -, é assessoria técnica aos tribunais, sem disponibilidade para pensar a dinâmica de ressocialização.

Terceiro – e esta é a questão de fundo. Os reclusos, na sua maioria, são pobres, não têm rendimentos, não têm emprego, são profissionalmente indiferenciados, e oriundos de famílias disfuncionais. Está é a realidade. Por isso, não se pode de forma leviana mandá-los para casa.

Finalmente. A execução da pena de prisão passou por duras batalhas para vir a ser, como acontece em todas as democracias, tutelada por um juiz, um Tribunal, garante da legalidade.  Com esta Lei, a pretexto da crise sanitária, retorna-se aos tempos de antes do 25 de abril, em que a vida de quem está privado de liberdade não passava pelos tribunais. Na realidade, à boleia desta pandemia, os dirigentes da reinserção e serviços prisionais ficam com poderes que só um Juiz pode ter.

Será que não vamos ver homicidas e violadores a beneficiarem destas licenças extraordinárias? Crimes que para o perdão de penas, previsto no art.º 1º, estão excluídos? Nada na Lei impede que tal aconteça. Resultado até de algumas cumplicidades que sabemos existirem, por vezes, entre superiores e presos.

Quem conhece o sistema prisional sabe bem quem são as pessoas que obtêm sempre os favores, e quase sempre não são os que apresentam menos risco para a sociedade. Estes aspetos, menos favoráveis, mas verdadeiros no sistema prisional, sempre foram limados por um Conselho Técnico e pela emissão de diferentes tipo de pareceres que eram considerados por um Juiz. Agora vão ser cozinhados entre o Diretor-geral, subdiretores, diretores de EP e guardas.

No art. 4º, respeitante às licenças extraordinárias, prevê-se que a renovação do período de 45 dias não tenha limites. A licença de saída está prevista por número infindo. O Diretor-geral ou os seus colaboradores podem outorgar estas licenças muito para além do período da pandemia,ad eterno.

Perguntam: qual a solução, então, tendo em conta o risco da covid? É verdade que os EP’s têm de ser descomprimidos. Há muita gente junta e isso é um perigo. Mas, para evitar tão graves atropelos à democracia, por um lado, e, por outro, para evitar problemas familiares graves, a  minha sugestão é que os reclusos necessários para desocupação de celas, numa primeira fase, sejam colocados em quartéis das Forças Armadas com uma guarda partilhada entre os ministérios da Justiça e da Defesa. Entretanto, os Conselhos Técnicos iam-se realizando para aplicação de medidas excecionais como as que apresenta esta Proposta de Lei. E assim se asseguravam duas coisas: uma violação menos dolorosa dos valores de Abril e, também, salvaguardando-se situações familiares e sociais complicadas. São muitos os reclusos sem retaguarda e são muitas as famílias sem qualquer interesse em receber os reclusos, sobretudo os que têm mais de 65 anos e que, à luz da presente proposta, poderão usufruir de um indulto especial.