Ao contrário do que tem sido dito até à saciedade, entendo que a crise política criada em torno das carreiras dos professores foi de extrema utilidade, porque permite perceber o posicionamento global de cada partido.
Comecemos pela caracterização do problema, que pode ser dividido em três partes. Por um lado, o Estado tem um peso excessivo e tem vindo a crescer, inclusivamente nesta legislatura. Por outro lado, ao contrário dos restantes funcionários públicos, os professores têm uma carreira especial, estando a promoção dependente do tempo de serviço e não da avaliação de desempenho. Por causa destes dois problemas, a progressão na carreira foi congelada ainda no tempo de Sócrates e, ao contrário do que se passa com a generalidade dos funcionários públicos, ainda não foi descongelada.
De uma forma geral, o BE e a CDU propõem uma sociedade estatizada, direitos adquiridos, promoções na carreira o mais automáticas possível, defesa de interesses de grupos corporativos, desde que pertencentes ao Estado. Não existe qualquer preocupação com a consolidação das contas públicas, nem com o bem comum. No caso concreto, propõem o descongelamento integral e imediato das carreiras. Quando se fala dos custos, respondem de forma consistente com o argumento de que, se há dinheiro para os bancos, também tem de haver dinheiro para salários.
Quanto ao PS, a narrativa tem sido a de que o crescimento não se deveu ao contexto internacional, turismo e exportações, mas à devolução de rendimentos. Aposta ainda na ideia da consolidação orçamental para limpar a imagem do anterior governo socialista, mesmo que para isso seja necessário sacrificar o serviço público. O político habilidoso, capaz de chegar a entendimentos improváveis e de virar a seu favor circunstâncias altamente adversas, não governa para a geração seguinte, mas para o dia seguinte. Ora, neste caso, começou por prometer o descongelamento total. Mais tarde, propõe um descongelamento parcial, deixando de fora o período do governo de Sócrates. Mais tarde, percebe que a causa dos professores não é popular. Perante a tendência de declínio nas sondagens, eis senão quando percebe que deixar cair os professores em nome da consolidação das contas lhe pode dar dividendos políticos. Tudo isto sem alguma vez fornecer dados detalhados e suportado por uma máquina de comunicação extremamente eficiente. Abdicou da paixão de Guterres, em detrimento da paixão pelas sondagens! Jogada genial, dizem os seus apoiantes…
Já o PSD de Rui Rio afirma-se como de centro esquerda, dizendo inclusivamente que poderia estar no PS, caso não existisse PSD. Promove uma imagem de austeridade que já vem do tempo da gestão autárquica. Apresenta-se como um PS alternativo, mais sério e responsável. Neste caso, a preocupação é a de evitar o branqueamento da origem do congelamento e do impacto nas contas públicas. Daí a cláusula de salvaguarda proposta que o PS, BE e CDU chumbaram. É uma posição consistente.
Por fim, o CDS apresenta-se com uma proposta política de redução do peso do Estado, procurando ter um discurso equilibrado para todos os setores da sociedade. Se, por um lado, é importante aproximar o regime da função pública ao do setor privado, também é importante criar condições para que trabalhar no Estado seja atrativo. O Estado não pode asfixiar a sociedade civil, mas deve ser um bom patrão. Além disso, Assunção Cristas assumiu o compromisso de fazer uma oposição construtiva e de fazer política pela positiva. Assumiu também o compromisso de trabalhar nos temas com profundidade e apostar mais na substância do que na forma.
Nesta linha de ação, é suposto negociar com outras forças políticas (mesmo numa reunião pública à qual Mário Nogueira pode assistir). No caso concreto, além das preocupações do PSD, introduziu a salvaguarda de revisão da progressão das carreiras. Face à falta de informação dada pelo Governo relativa aos impactos financeiros, a proposta era genérica, remetendo para uma obrigação do Governo negociar com os sindicatos. Esta parte da proposta é também consistente com a linha orientadora de privilegiar o diálogo social. Se esta proposta fosse aprovada, terminaria uma situação que era suposto ser transitória, com a vantagem de resolver o eterno problema das promoções automáticas e garantindo que não há acréscimo de despesa para o Estado. O custo das progressões seria compensado com a rotação normal dos professores, tal como acontece na generalidade das profissões.
É certo que o CDS desvalorizou a necessidade de comunicação desta estratégia, não conseguindo explicar em que medida esta proposta se enquadra na proposta global relativamente ao ensino, nomeadamente no que se refere à recuperação da autoridade dos professores e dignificação do ensino. Por outro lado, a introdução do mérito nas carreiras é essencial para a redução da centralização e maior autonomia das escolas. Nada disto foi explicado, porque se presumiu que a bondade da proposta seria suficiente.
Por tudo isto, entre a ingenuidade própria de quem tem princípios e a habilidade desonesta, não tenho dúvidas de que lado estou.