Tirando a Universidade Católica – que não é privada nem pública – as actuais universidades privadas em Portugal descendem de uma criada a seguir ao 25 de Abril com o nome capcioso de «Livre», mas só se generalizaram durante o decenato do primeiro-ministro Cavaco Silva, aproveitando a herança do «numerus clausus» imposto no primeiro governo constitucional. A fim de contribuir para a proliferação dos cursos universitários privados que então se verificou e está a verificar-se de novo, os governos apertaram o «numerus clausus» e aumentaram as propinas. Em compensação, criaram um regime de bolsas para os candidatos aceites que não tinham meios para as pagar.
Ao mesmo tempo que aumentavam as propinas, os governos diminuíram os orçamentos das universidades estatais. Eis se não quando o actual ministro do Ensino Superior se lembrou de dizer que seria boa ideia acabar com as propinas. Logo o PR, que não esquece ter sido comentador da TVI, declarou que estava de acordo. Quando lhe lembraram que já tinha dito o contrário, respondeu que «as propinas tinham falhado». Em quê? Não falharam nada! Serviram para criar as universidades privadas e para diminuir o orçamento estatal das públicas: várias centenas de milhões de euros anuais poupados pelas Finanças.
Logo a auto-declarada esquerda, roçando o eleitoralismo do novo ano, apoiou a ideia de acabar de vez com as propinas, esquecendo que, no caso de tal ideia ir para a frente, de duas uma: ou diminui o orçamento das universidades públicas ou a reposição das propinas abolidas será suportada pelo conjunto dos contribuintes. As famílias ficam dispensadas de pagar propinas e passam o ónus do financiamento à generalidade da população. Ora, em Portugal, os impostos indirectos, ou seja, aqueles que mais penalizam as pessoas de menores rendimentos, são o dobro do IRS, o qual apenas se aplica à metade mais abonada da população…
É demagógico que um cronista de esquerda reivindique «um ensino superior robusto, tendencialmente gratuito e universal» e clame por «trazer o ensino obrigatório até à universidade». O elitismo destes pretensos protectores do povo é cego! Não só nada dizem acerca do que aconteceria com os estabelecimentos de ensino superior privado como tão pouco falam do «numerus clausus», o qual fornece os alunos excluídos das públicas às privadas, constituindo assim a principal explicação para a existência destas últimas.
Pior, desde os protestatários de há um quarto de século até ao presidente da República, então líder do PSD, todos omitiram, deliberadamente ou não, que Portugal tem um dos mais elevados retornos individuais do investimento nos diplomas universitários. Isso já foi aliás assinalado há muito: tal retorno é um insofismável indicador da raridade do dito diploma, bem como da profunda desigualdade remuneratória que está na base de todos os estudos sobre a desigualdade sócio-económica em Portugal, apesar das medidas redistributivas que existem através do IRS. Sempre assim foi e o que admira é que assim continue a ser, apesar da relativa massificação das universidades. Segundo uma edição do «Expresso» do ano passado, o gasto conjunto dos particulares e dos impostos pagos por pobres e ricos aos governos com as universidades estatais garante aos diplomados do ensino superior um «prémio salarial de 43%» em relação a um jovem com o ensino secundário
Num estudo que coordenei em 2008, já uma perita britânica apontava para esse desmesurado «prémio» que indiciava, sem disfarce possível, o controle que as elites governamentais e académicas mantinham sobre o acesso à universidade em geral e sobre a articulação económica entre os interesses dos sectores estatal e privado. Na realidade, o «prémio salarial de 43%» é, segundo a OCDE, maior: «um licenciado ganha em Portugal, em média, 69% acima de um diplomado do ensino secundário e permanece menos tempo no desemprego», superando a média europeia em 53%, ao mesmo tempo que «a taxa de desemprego dos recém-licenciados (5,5%) é um quarto da média dos jovens da mesma idade» («Education at a glance», 2018).
Nestas condições, quem se admira que as famílias dos estudantes do sector privado paguem as propinas que lhes exigem a fim de os filhos ascenderem àquele nível de remuneração? Segundo o discutível cálculo apresentado no «Expresso» de sábado passado, os alunos do sector público gastariam uma média de 5.700€ por ano, portanto cerca de 17.000€ nos três anos da licenciatura. Por baixo, ganhariam em média 20.000€ por ano à saída da universidade, sendo o investimento recuperado em pouco mais de meia dúzia de anos com 10% de poupança… Era tudo isto que se esperava que as novas elites esquerdizantes fossem as primeiras a denunciar; mas não. Esta proposta de abolição das propinas não passa de um deplorável «slogan» corporativo que ignora o essencial da questão!