Tem sido notícia na imprensa internacional dos últimos meses: edições raras de livros de Pushkin andam a desaparecer das bibliotecas de toda a Europa. O primeiro alerta veio da Biblioteca Diderot, em Lyon, de onde se evaporaram, em Julho passado, vários manuscritos do poeta russo, incluindo um que terá pertencido ao czar Boris Godunov, avaliado em 70 mil euros. No Outono, foi a Biblioteca Nacional de Paris: uma janela partida no departamento de Línguas Orientais servia de antecâmara à descoberta de que 11 preciosas primeiras edições tinham sido substituídas por réplicas de alta qualidade. Há dias, o New York Times fazia o ponto de situação do saque: mais de 170 obras desaparecidas de França, Alemanha, Finlândia, Letónia ou Polónia. Só da Biblioteca da Universidade de Varsóvia foram 78. Prejuízo financeiro avaliado em mais de 2,6 milhões de euros. Mas este não se trata, obviamente, de um crime económico.

O caso tem, por todas as razões, um certo charme literário: num mundo onde, do email de phishing à invasão de países soberanos, quase tudo parece mover-se por dinheiro, eis um ladrão de casaca apaixonado por livros. Lamentavelmente, o encanto não resiste a uma leitura um pouco mais demorada: é possível que, por trás da guerra e do roubo das bibliotecas, esteja afinal um e o mesmo homem… É que Pushkin, poeta lido, no seu tempo, como um herói da oposição ao czar, é hoje um dos predilectos nos discursos de Putin. E enquanto a Rússia precisa de símbolos unificadores, na Ucrânia, pelas razões inversamente proporcionais, deitam-se abaixo estátuas e bustos e arrancam-se as placas de ruas e praças em nome do pobre poeta Aleksandr, romântico que morreu aos 38 anos num duelo para o qual desafiara o amante da mulher, e que nada devia ter a ver com isto.

Num momento em que muito se discute o tema das “reparações históricas” e se procura responsabilizar aqueles que, hoje, pisam a face da Terra, pelo que fizeram os que por cá andaram séculos antes, é igualmente absurdo querer, à força, que os nossos antepassados legitimem os nossos actos. Como se soubessem de antemão o que iria acontecer. Como se Pushkin, algum dia, antes, depois ou durante os diferendos com a esposa Natalya, pudesse ter escrito os seus versos antecipando o mundo em que viveríamos 200 anos mais tarde. Em resumo: tão ou mais ridículo do que querer que o presente pague pelos crimes do passado, é pretender que o passado responda pelos pecados do futuro.

O Alzheimer e outras doenças neurodegenerativas são cada vez mais uma dificuldade que temos de enfrentar, à medida que vivemos vidas cada vez mais longas. Estudos abundantes já documentam os efeitos destruidores do uso excessivo dos ecrãs na nossa memória, bombardeada com informação a uma velocidade a que não consegue reter, e empobrecida pelo exercício imediato de se procurar nos motores de busca aquilo que, com ligeiro esforço, descobriríamos, mais minuto, menos minuto, num qualquer cómodo do vasto apartamento das nossas cabeças. Deep fakes e outros truques de inteligência artificial vão tentar dobrar, cada vez mais, a nossa percepção do que realmente acontece e aconteceu. Sim, ter um resto de memória não será apenas cada vez mais importante; será vital. A diferença entre liberdade e servidão. Precisamos de clínicas para a memória, spas para a memória, ginásios para a memória, teambuildings, bootcamps e outros estrangeirismos cool, tudo quanto possa ajudar a fazer durar a memória, como um animal raro que se protege da extinção.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR

Por cá, no Expresso da semana passada, Raquel Varela escreve que o 25 de Novembro foi “um golpe de Estado à direita”, liderado por Ramalho Eanes e Mário Soares, “contra a democracia no trabalho” e “a dualidade do poder popular” (o que quer que isso seja), recuperado hoje pela “nova extrema-direita”, para dentro da qual atira, indistintamente, Iniciativa Liberal e Chega, que cataloga de “plêiade ultraliberal e hiperconservadora” – o que não surpreende, a partir do momento em que percebemos estar a falar com alguém para quem, pelos vistos, até Mário Soares era um perigoso direitolas.

Vale a pena lembrar, que nas eleições para a Assembleia Constituinte o PCP não foi além dos 12% dos votos e, nas de 1976, dos 14. Serve isto para refrescar a memória a quem precise ou acabar com a ingenuidade aos que imaginem um grande movimento “revolucionário” que tivesse sido travado pelo 25 de Novembro. O povo, aquele que existe mesmo e não o que abunda na boca dos “revolucionários”, falou antes e depois do 25 de Novembro, e em ambos os casos escolheu, esmagadoramente, as forças políticas que o fizeram ou apoiaram.

Não me preocupa que alguém escreva nos jornais o que Raquel Varela escreve, sobretudo quando divide a página com uma contraparte que expõe, precisamente, a posição contrária. A isso chama-se democracia, liberdade, pluralismo de opinião, tudo coisas que não existiriam se os derrotados do 25 de Novembro, que a autora tanto parece apreciar, tivessem vencido. O que me preocupa é que quem escreva isto assine como professora da Universidade Nova de Lisboa e que, portanto, possamos legitimamente suspeitar que este seja o tipo de reescrita da História que se ande a ensinar também por cá, nas nossas universidades – e logo nas públicas. Afinal, nem só na academia americana há guerras culturais nem na China campos de reeducação. A questão já chegou aqui e, em poucos anos, deveremos ter os resultados à vista. Pelos vistos, nem sempre é por ignorância que as novas gerações desconhecem o passado; é mesmo por educação.