Nós avisámos. Aqui mesmo no Observador, há cerca de um ano. A segunda lição putiniana materializou-se. A Rússia interveio pois chegou à conclusão que os seus interesses vitais estavam em risco.
A maior mentira que circula nestes dias – dos dois lados da barricada – é a de tentar explicar que o outro campo é nazi. A nazificação de Putin e dos seus e a nazificação dos ucranianos são exageradas. Mas são igualmente a consequência de uma banalização promovida por Washington e por Moscovo durante a Guerra Fria. Depois de 1945 foi bastante conveniente, tanto para um campo como para o outro, declarar que os inconvenientes eram nazis. Nazis, fascistas ou, a melhor de todas, nazi-fascistas. Já quase ninguém sabe o que foi o Fascismo; foi um movimento italiano que comandou a Itália durante sensivelmente 20 anos, conhecido coloquialmente como il ventennio. E também cada vez menos se sabe o que foi o Nacional Socialismo – corriqueiramente Nazismo – movimento pan-germânico que comandou a Alemanha durante pouco mais de uma década.
Não obstante, existem grupos paramilitares inspirados parcialmente por um imaginário nacional socialista na Ucrânia – sendo o mais conhecido o Batalhão Azov. Existe também uma semelhança entre o argumento da Rússia de hoje e o da Alemanha d’outrora; a protecção da sua gente fora das fronteiras do país.
Para começar a perceber minimamente o que se passa na Ucrânia é preciso remontar ao final do século passado, depois da implosão da União Soviética. Nesse fim de século, que Fukuyama quis que fosse o fim da história, a Rússia encontrava-se desamparada e abusaram-na sem dó nem piedade. Pior, arrancaram o berço à Sérvia e a Rússia nada pôde fazer para proteger a nação irmã. Quem conhece a alma russa sabe que os russos sofrem tanto pela Sérvia como pela própria pátria.
Alguns anos mais tarde, em 2005, Zbigniev Brzezinski recebeu um outro geopolitólogo nos Estados Unidos; o seu nome era Alexandre Dugin. Depois de conversarem um pouco Dugin pergunta a Brzezinski: “Acha que o xadrez é um jogo para dois?”
A resposta de Brzezinski foi clara: “Não, o xadrez é um jogo para um. Faz-se a jogada, vira-se o tabuleiro, e faz-se outra jogada.”
E claro, para Brzezinski, o único jogador seria a potência que ele representava, os Estados Unidos da América. Os outros iriam ter que se contentar com serem meros observadores. O seu livro, The Grand Chessboard (O Grande Tabuleiro), afirma taxativamente que a Ucrânia teria que ser removida da esfera de influência russa; se assim não fosse a Rússia seria, uma vez mais, um império. Está tudo dito.
Mas continuemos. Num pequeno livrinho titulado Terra e Mar, Carl Schmitt narra a História como um afrontamento entre as talassocracias – potências marítimas – e as telurocracias – potências terrestres. Noutra imagem: entre o Leviatão e o Beemote. Não é difícil perceber quem é quem no confronto actual.
A América talassocrática, animada pelo atlantismo, e a Rússia telurocrática, animada pelo eurasismo, estão em rota de colisão.
Para Putin, e para tantos russos, a Rússia não está a jogar fora, está a jogar em casa. Os ucranianos não são vistos como um povo à parte e o seu território é visto como uma continuação da Rússia. O Czar do século XXI crê que russos, bielorrussos e ucranianos são o mesmo povo. Tal como antanho outros pensaram que portugueses, castelhanos, catalães eram o mesmo povo hispânico (União Ibérica) e suecos, dinamarqueses, noruegueses eram o mesmo povo escandinavo (União de Kalmar). Ainda há quem o pense.
As consequências do falhanço diplomático vão ser imensas, os ucranianos sofrem-nas na pele, os russos igualmente, mas por esse planeta fora muitos as vão sofrer, se bem que indirectamente. Não deixa de ser desconcertante ver a União Europeia a seguir as indicações vindas de Londres. Para os mais esquecidos: Boris Johnson, durante a campanha do Brexit, comparou-a com uma prisão e, estruturalmente, com o projecto de hegemonização continental da época hitleriana. O Reino Unido saiu da União Europeia mas dita as regras do jogo a Bruxelas. Os britânicos, mais uma vez, têm o melhor de dois mundos.
Os Estados Unidos estão bem precavidos e atingem dois objectivos estratégicos. Primeiro: separam a Rússia de países relevantes da Europa continental, principalmente da Alemanha, Itália e França. Segundo: estrangulam a oposição interna que se queria focar principalmente na China e descurar a Rússia. Vamos ver até que ponto é que as elites continentais seguem a vulgata atlantista e se existirão reviravoltas. Na Europa central e oriental o frio pode tornar-se o inimigo número um.
A invasão da Ucrânia – também conhecida como operação militar especial – desencadeou uma onda de solidariedade vis-à-vis do governo ucraniano, mas empoderou igualmente uma russofobia que infelizmente se tem vindo a normalizar. Lembrete: os russos que vivem fora da Rússia são frequentemente hostis ao actual governo russo. Mas mesmo que não o sejam não devem ser de qualquer maneira maltratados, nem na vida social, nem na laboral, nem em qualquer outra.
No meio do fumo e das bombas, a imperatriz, desde Bruxelas, mandou censurar mídia russa, como RT e Sputnik. Não é grave, é gravíssimo. Ainda para mais para aqueles que se dizem os arautos da liberdade. Quem pensa que esses média se resumiam a propaganda do Kremlin está redondamente enganado. Lembro-me de ouvir o excelente jurista Stéphane Rials num programa da RT depois da morte de Ghassem Soleimani. Recentemente tinha assistido no Sputnik a uma entrevista de Thomas Guénolé, politólogo francês que escreveu um bom livro sobre os diferentes campos soberanistas – Le souverainisme.
A Rússia não é o Iraque e mesmo tendo uma economia menor do que a italiana – como é de bom-tom mencionar constantemente em alguns círculos – não se vai deixar vassalizar facilmente. Enquanto Londres e Moscovo trocam galhardetes, num remake inesperado do século XIX, o verdadeiro nó gordiano do século está no Pacífico. Lá, Washington e Pequim fixam-se sem pestanejar.