É uma boa altura para abordar a geopolítica de Moscovo, depois da tensão fronteiriça com a Ucrânia ter-se esfriado e de Putin ter falado à nação russa, num discurso que foi essencialmente interno, mas que não deixou de ter breves menções aos possíveis inimigos do Estado russo.

Nesta situação, como em todas as situações, é necessário ter recuo histórico para perceber o presente. Quando o muro de Berlim cai e a questão da reunificação alemã se coloca as potências vencedoras que haviam ocupado a Alemanha divergem. Se os dois principais vencedores da Segunda Guerra Mundial querem uma Alemanha unificada rapidamente – os Estados Unidos e a Federação Russa – os outros dois – a Grã-Bretanha e a França – são mais cépticos quanto aos benefícios de uma reunificação.

Margaret Thatcher e François Mitterrand temiam a reunificação, sabendo que esta provocaria uma convulsão na Europa continental e mudaria a configuração geopolítica do continente. A dama de ferro não precisou de esperar pela queda do muro para delinear a sua visão da Europa no famoso Bruges Speech, momento fundacional daquilo que viria a ser o Brexit. A reunificação alemã exacerbaria as condições de uma centralização de poder, que ela havia descrito assim: “[…] trabalhar mais unidos não requer que o poder seja centralizado em Bruxelas ou que as decisões sejam tomadas por uma burocracia não-eleita […]” – em inglês – working more closely together does not require power to be centralized in Brussels or decisions to be taken by an appointed bureaucracy.

Mitterrand nunca deixou de ser um nacionalista francês. Que recebeu uma Francisca do Marechal Pétain ou que disse a Argélia é a França, com o intuito de estancar a independência argelina. Mas apesar de tudo isso era um homem tributário do realismo de Maquiavel – não por acaso era conhecido como o florentino – e por isso mesmo reuniu o partido socialista e o partido comunista para poder entrar no Eliseu. Fez também a sua carreira política contra o General de Gaulle, apesar de uma vez eleito ter seguido uma política externa parcialmente gaulista, não subjugando o interesse francês a potências estrangeiras. Alguns chegam mesmo a apontar uma tradição de política estrangeira francesa que seria o Gaullo-mitterrandisme. O perigo da reunificação alemã era-lhe tudo menos alheio.

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A esta altura o leitor perguntar-se-á: qual a relação entre a geopolítica russa hoje e a reunificação alemã? A relação é bem estreita. A Rússia, elemento central da União Soviética que se desintegrava a largos passos, viu a Alemanha como um possível aliado futuro face às imposições ocidentais. Principalmente uma Alemanha unificada, que deslocaria a força gravitacional do continente para leste. Putin, germanófono e germanófilo, inscreve-se no tempo longo. Ele sabe que a Alemanha não é ocidental e que o próprio Ocidente é um conceito movediço, frequentemente utilizado pela geopolítica americana para alinhar Londres e Paris aos seus desígnios.

Peter Hitchens, no seu estrondoso Abolition of Britain, deplora a americanização do Reino-Unido. Em França, da direita à esquerda, temos frequentemente críticas acérrimas sobre a importação da visão americana do mundo; peguemos no exemplo de Eugénie Bastié no seu Porc Émissaire. A controvérsia do assédio sexual que desembocou no movimento Me Too recebeu uma resposta de 100 mulheres francesas numa tribuna no jornal Le Monde. A visão destas causou pânico na América e foi compreendida por muitos como uma apologia da violação. Bastié analisa a situação opondo o puritanismo (americano) e o cavalheirismo (francês). Mas desengane-se quem pensa que isto são diferenças de nuance dentro duma mesma cosmovisão.

Os ordenamentos dos três países chave do suposto Ocidente não são simplesmente diferentes, são antitéticos. No Reino Unido tudo repousa na coroa, nos Estados Unidos tudo repousa no colégio eleitoral e na quinta república francesa tudo repousa no monarca republicano, onde o sufrágio universal é o substituto da unção de Reims.

Esta é a primeira lição putiniana: as identidades colectivas existem e são importantíssimas. O Czar do século XXI faz parte da tradição da Realpolitik, tal como Nicolau Maquiavel, Otto von Bismarck, Charles de Gaulle.

Vladimir Putin, apesar de realista, não deixa de esposar uma cosmovisão bizantina da Rússia, e não eurasiática. A visão da Terceira Roma ou a visão do Eurasismo são as duas grandes forças metafísicas que moldam a Rússia dos nossos dias. A primeira vê a Rússia como o último império cristão, herdeira de Constantino, de Teodósio, de Justiniano, o baluarte de Deus face às Hordas do Anticristo. A segunda vê a Rússia como uma nação sui generis, uma fusão dos eslavos com os asiáticos, como uma essência que não é europeia nem asiática – é uma sublimação dessas duas essências. Em termos hegelianos dir-se-ia que é um processo de tese, antítese e finalmente de síntese.

A segunda lição putiniana é a seguinte: a Rússia intervirá quando os seus interesses vitais estiverem em risco. Vimo-lo na Geórgia em 2008, na Crimeia em 2014 e continuamos a vê-lo na guerra civil síria.

No recente discurso de Putin à Rússia foi referido que os russos impediram recentemente o assassinato de Lukashenko, presidente da Bielorrússia, e o consequente ataque informático ao país. Os propulsionadores dessas acções não foram nomeados, mas não é muito difícil imaginar quem o Kremlin estava a acusar. Henry Kissinger mostrou-se preocupado recentemente com a intransigência da administração Biden e exortou os Estados Unidos a aceitar a nova ordem mundial multipolar ou a entrar numa fase que se aparenta àquela antes da Grande Guerra. Samuel Huntington, na sua divisão das civilizações, coloca países como a Grécia ou a Roménia dentro da esfera geopolítica russa, dois países, recorde-se, membros da NATO. O fervor ideológico imbuído de idealismo tem tudo para terminar mal, como tantas vezes durante a História, o desrespeito do outro levou-nos à guerra, com o intuito de o moldarmos à nossa imagem.

A terceira lição putiniana traz-nos de volta para a Alemanha, demonstrando a sua relevância na marcha do Mundo. A eleição alemã deste ano e a construção do gasoduto Nord Stream 2 são as duas questões primordiais. Teremos então que as analisar em conjunto.

Armin Laschet será o candidato da CDU/CSU, o seu adversário – Markus Söder  – concedeu a disputa. Não explicaremos aqui a diferença entre a identidade da Alemanha unificada (e não reunificada) e a identidade bávara, que na realidade foi a oposição de fundo entre Laschet e Söder. Porém, parece-nos que a vitória do primeiro é um duro golpe para a geopolítica americana; Laschet será mais benevolente com os interesses russos e principalmente chineses do que a América desejaria. Mas uma grande potência tem sempre um plano B. O americano neste caso chama-se Annalena Baerbock, candidata dos Verdes. Esse partido, em nome dos mais elevados valores da ecologia, quer bloquear o novo gasoduto. E estamos perante um exemplo perfeito de que a convicção profunda de uns nada mais é do que um instrumento para avançar os interesses de outros.

Quando George Bush (o pai não o filho) deu a luz verde para a reunificação alemã meteu em marcha um processo que serviu os Estados Unidos até à crise do euro. Varoufakis dirá que um responsável norte-americano lhe disse que a Grécia estava na esfera de influência alemã e que os Estados Unidos não interviriam na situação.

Não obstante, a reunificação teve outro efeito, a capital desertou Bona e voltou a Berlim. E em Berlim não se está no Reno, está-se no coração de Brandeburgo. E quem diz Brandeburgo diz Prússia. E quem diz Prússia diz Alemanha. E a reunificação desta tratou de muitos problemas, mas criou muitos outros. Hoje a América tem que lidar com um Estado que já não é o que foi, mas que tem vontade própria, Putin sabe-o e utiliza-o. A inimizade da Rússia acarreta consequências distintas para a Pomerânia e para a Nova Inglaterra.

De Frederico, o Grande, ao pacto Molotov-Ribbentropp, passando por Bismarck – a História provou várias vezes que a Alemanha sem a inimizade da Rússia é invencível.