Nos últimos anos temos vindo a assistir a uma crescente e necessária desburocratização de processos na administração pública, nacional ou local, nomeadamente na obtenção de documentos ou licenciamentos. Isso, na maioria dos casos, é benéfico para os cidadãos e para as empresas e são inúmeros os seus exemplos. Noutros casos, pode ser perverso o seu efeito. E também há diversas situações que o poderiam ilustrar, desde logo pela impossibilidade de uma larga maioria da nossa população rural, envelhecida, não poder nem saber aceder às disseminadas plataformas online dos serviços de atendimento ao público “geral” (?) das câmaras municipais.

Mas foquemo-nos numa situação em especial, dada a sua dimensão e importância, e porque estão, uma vez mais, em causa os mais frágeis e vulneráveis: os idosos e as crianças.

Trata-se do licenciamento dos estabelecimentos de apoio social, regulamentado pelo Decreto-Lei n.º 126-A/2021, publicado no último dia do ano de 2021, pelo inabalável Governo Socialista, fã número um do “Simplex” (exceto no que respeita ao alojamento local, bruxa má da crise da habitação).

Recorde-se que nos estabelecimentos de apoio social estão incluídos todos aqueles em que são prestados serviços de apoio às pessoas e às famílias, direcionados a crianças e jovens, pessoas idosas, pessoas com deficiência e pessoas vulneráveis.

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Desde essa altura, e visando “simplificar os processos de licenciamento dos estabelecimentos de apoio social…”, “…através da eliminação de constrangimentos detetados, da melhoria na articulação dos diferentes intervenientes, bem como da agilização e desmaterialização dos procedimentos legais definidos…” que se tornou extremamente simples, quase irresponsável, a obtenção de licenciamento para ter e/ou explorar um qualquer destes equipamentos.

Vejamos então o que foi, fundamentalmente, alterado ou, dito com “charme” político, “simplificado”: 1) Na aprovação do projeto sujeito a licenciamento pela câmara municipal, ficam dispensadas de parecer do Instituto da Segurança Social I. P. (ISS) as respostas sociais compatíveis com licença ou autorização de utilização do edificado como habitação; 2) Pode haver lugar a dispensa dos requisitos legalmente exigidos para a instalação e funcionamento das respostas sociais, e esta pode ser concedida pelo ISS, ou pela câmara municipal, no âmbito das respetivas competências. Esta dispensa pode ser concedida sempre que o cumprimento dos requisitos em apreço afete as características arquitetónicas ou estruturais de edifícios, ou quando exista “manifesta desproporcionalidade custo-benefício”; 3) Note-se que esta dispensa de requisitos é requerida ao ISS, ou à câmara municipal, e é concedida tacitamente sempre que não seja proferida uma decisão expressa sobre a mesma no prazo de 30 dias; 4) A autorização de funcionamento pode ser obtida junto do ISS, através de mera comunicação prévia, no caso da generalidade das respostas sociais; 5) Nas situações em que é exigível uma comunicação prévia com prazo (nas estruturas residenciais para pessoas idosas e lares residenciais para pessoas com deficiência), a resposta social apenas pode entrar em funcionamento uma vez decorrido o prazo de 30 dias para eventual oposição do ISS, mas inexistindo oposição, no prazo concedido para o efeito, a resposta social pode iniciar atividade.

Portanto, há dispensa de pareceres em diversas situações; a maioria das autorizações de funcionamento exige uma mera comunicação prévia; e quando essa autorização prevê uma ação do ISS, a mesma é tacitamente concedida se o ISS não atuar em 30 dias.

Perante isto, muitas serão as situações em que o lar ou a creche abrem, as pessoas (vulneráveis) são lá colocadas, as famílias confiam e as complicações aparecem depois…. Muitas delas noticiadas, em imagens e relatos aterradores. E depois, é muito mais difícil e doloroso para todos proceder ao encerramento compulsivo e às transferências atabalhoadas destes seres humanos, inocentes, dentro de uma rede alegadamente escassa e aparentemente disfuncional.

Dado o caráter sensível da atividade em apreço, da vulnerabilidade do seu público-alvo e da escassez (absoluta ou relativa) de técnicos do ISS, em especial em algumas localidades ou regiões, exigir-se-ia mais rigor e segurança no processo de licenciamento e autorização de funcionamento, a bem de todos, em especial dos mais vulneráveis.

Neste caso, como noutros, simplicidade a mais pode ser semelhante a desleixo.

(Agradeço à Sra. Dra. Francisca Malheiro Reymão ter-me alertado para esta questão.)