Na década de 60 do século XX uma farmacêutica alemã colocou no mercado um remédio indicado para dormir e para enjoos matinais das grávidas. O medicamento tinha defeitos, escondidos durante testes feitos em prisioneiros de campos de concentração na II Guerra Mundial, que morreram, mas esses ‘efeitos’ não foram reportados e passadas algumas décadas depois, o medicamento entrou tranquilamente no mercado. Chegaram a nascer 10 000 crianças sem braços e sem pernas.

Em 2006, a juíza Gladys Kessler discorreu numa sentença histórica de 1700 páginas sobre as práticas fraudulentas da tabaqueira Phillipp Morris ao longo de 50 anos, e que incluíram a criação de um tabaco geneticamente modificado para induzir maiores níveis de viciação. Numa passagem particularmente eloquente, a sentença conclui que «a indústria está por trás da epidemia tabagista [nos EUA] e atua em conjunto e coordenadamente para enganar a opinião pública, Governo, a comunidade de saúde e os consumidores.»

O filme Erin Brockovich relata as trágicas mortes por cancros causados pelo despejo de 1400 milhões de litros de resíduos de águas com crómio pela Pacific Gas and Electric Company, atingindo a população da vila californiana de Hinkley. A empresa sabia o que estava a fazer. Mas não se coibiu de o continuar. Foi graças a uma ação coletiva movida pelo voluntarismo da mãe de três filhos, Erin Brockovich, que inspirou o filme do mesmo nome, que os lesados foram indemnizados.

A Cambridge Analytica, com os dados pessoais, o perfil psicológico, o conhecimento das propensões, anseios e receios de milhões de pessoas, dados que lhe foram vendidos pelo Facebook, difundiu milhões de conteúdos de vídeo criados para influenciar movimentos sociais, decisões de voto, ódio racial, extremismo e divisionismo.

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Os conteúdos de vídeo e texto são então definidos por uma equipa de criativos orientados pelos cientistas das ciências comportamentais para atingir objetivos específicos de manipulação do comportamento de milhões e milhões de pessoas, a partir do conhecimento psicométrico detalhado individualizado e nominativo da população de vários países ou geografias.

Estão identificados como «clientes» da Cambridge Analytica, no Reino Unido, a campanha pró-Brexit, nos EUA, a campanha do primeiro mandato de Trump, derrotando Hillary Clinton fustigada nas redes sociais e comunicação social com toda uma plêiade de acusações e chacota.

A capitalização bolsista do Facebook é hoje de 679 mil milhões de dólares. Quanto desse valor não foi gerado com lesão ilegal do direito à informação, do direito à liberdade de formação da personalidade, através da apropriação indevida e abusiva dos dados pessoais e da vida privada e íntima, ou das convicções políticas, religiosas, orientação sexual, identidade de género?

E será que algum desse valor devia ser devolvido na forma de indemnização? E não deveriam os algoritmos ser corrigidos e re-treinados e os dados excessivos eliminados?

Desde a eclosão das redes sociais, de que o Tik Tok é destacado campeão em tempo de ecrã, a taxa de suicídio, automutilação e anorexia entre as jovens pré-adolescentes e adolescentes aumentou exponencialmente, pelo menos segundo dados publicados sobre os EUA.

Empresas que conluiam preços e limitam o livre jogo da concorrência durante décadas a fio e levam ao aumento artificial dos preços, podem afetar o acesso a produtos ou a serviços fúteis e supérfluos, mas também podem afetar o acesso a bens essenciais por muitas famílias.

Quando os Parlamentos dos países fazem regras, fazem-nas por alguma razão. A economia, a inovação científico-médica, a livre iniciativa privada, a perseguição do lucro, a combatividade política, a liberdade de expressão, são, todos eles, valores fundamentais de uma sociedade próspera.

Mas, sem os incentivos certos, os bons valores pervertem-se. A História e a atualidade são pródigas em exemplos.

 

O que teria sido diferente se não fosse…

O Brexit. Será que o Reino Unido ainda estaria na UE se Mark Zuckerberg não tivesse vendido os dados dos seus clientes à Cambridge Analytica? Quantos ‘persuasíveis’ (jargão da empresa) foram colocados numa bolha de informação e mudaram o rumo da vida de todos os ingleses? Será esse um dos orgulhos deste Mark no final da sua vida, quando relatar aos filhos aquilo de que se orgulha ter feito?

O massacre do Myanmar. Documentos internos da Meta afirmam que as ferramentas do sistema interno de inteligência artificial do Facebook, como a viralização, as recomendações ou a otimização para o engagement, promoveram a difusão do discurso de ódio racista no Myanmar. Quem vai responder pelos milhões de vidas chacinadas? O PIB do Myanmar foi de 65 mil milhões de dólares em 2021. Portanto, um décimo da capitalização bolsista do Facebook.

Quanto valeu distribuir no feed os conteúdos que serviram de arma de guerra para o golpe que assassinou brutalmente 6.337 civis e 2.614 feridos no Myanmar em apenas em 20 meses, entre fevereiro de 2021 e 30 de setembro de 2022? Se indemnizássemos cada uma das 8.951 pessoas num milhão de dólares, um valor que muitos achariam exorbitante, ainda assim estaríamos apenas a beliscar 1,3% da capitalização bolsista do Facebook.

Faturo, logo existo.

Violar as leis que protegem os consumidores, os eleitores, os donos dos dados, etc., tem consequências práticas nefastas na vida das pessoas.

A responsabilização civil pelos danos causados na vida dessas pessoas é um incentivo para prevenir a lesão dos valores.

A conduta ilegal pode desencadear a responsabilidade contra-ordenacional ou criminal. Os reguladores fazem o seu papel, aplicando coimas ou multas às empresas. Mas estas nunca chegam às pessoas reais, até porque são receita do Estado. Por outro lado, sem indemnização dos danos causados, o crime (normalmente) compensa.

Uma das ações coletivas em curso em Portugal por violação do direito da concorrência corre contra a Super Bock, que vem sendo sucessivamente condenada pela Autoridade da Concorrência: foi-no em 1985, em 2000 e em 2019. Da última vez, foi condenada numa multa de 24 milhões de euros por práticas levadas a cabo durante onze anos, entre 2006 e 2017.

Naquela ação popular no tribunal da concorrência de Santarém, que é pública, estima-se que ao longo desses 11 anos a Superbock tenha obtido ganhos 11% acima das condições concorrenciais, num valor total de EUR 196,61 milhões.

Divididos em 11 partes iguais, terá obtido um retorno da violação do direito da concorrência anual de EUR 18 milhões (não entrando com complexidades de atualização ao valor real). Dividindo por onze o valor da coima de EUR 24 milhões (cerca de EUR 2 milhões por ano), a ilicitude ainda renderia um ganho anti-concorrencial líquido de EUR 16 milhões em cada um desses 11 anos.

O mantra da remuneração do acionista, que preside ao funcionamento de mercados livres e concorrenciais, sem a contenção imposta pelo private enforcement, com a indemnização dos danos causados aos consumidores, faz, portanto, com que o crime compense. Parafraseando Descartes, faturo, logo, existo.

Mas, se a Superbock for obrigada a repor no mercado aquilo de que indevidamente se apropriou em termos de transferência de riqueza, perderá o incentivo para violar as regras de livre concorrência. A responsabilização pelos danos é então, além de elementar justiça, um auxiliar precioso para policiar o negócio.

Numa sociedade tecnológica de consumo de massas, o consumidor lesado é uma gota de água num oceano, e a assimetria de informação e de recursos técnicos e humanos entre o lesante empresarial e o lesado, pessoa individual, é avassaladoramente desproporcional.

As ações coletivas são então um instrumento de correção dos mercados, em que pode assentar um tecido social onde os indivíduos podem florescer nos seus projetos de vida, satisfazendo as suas necessidades de consumo dentro de mercados prósperos, mas éticos.

Uma sociedade desenvolvida deve preservar os atores cívicos que têm por missão e vocação lutar pela tutela dos direitos e interesses dos consumidores, pelo respeito da lei, pela preservação do ambiente; pela qualidade das cidades, pelo respeito dos direitos humanos, pela legalidade democrática, pela (verdadeira) liberdade de imprensa, pelo direito de informar e de ser mesmo informado.

O bom líder empresarial aprecia o sistema que responsabilize a empresa que lidera, e todas as outras com que concorre, caso ela própria ou as outras pervertam os valores que a sociedade quer proteger através da Law of the Land.

O Erro de Descartes, parafraseando António Damásio, estará para o Penso, logo, existo, cartesiando, como as Ações Coletivas de Reparação estarão para um Faturo, logo, existo.

www.iusomnibus.eu — daniela.antao@iusomnibus.eu