Para o cristão, que tem o privilégio e a inquietação de acreditar, o tempo da Páscoa, o tempo da paixão, morte e ressurreição de Cristo, é o tempo da intensa consumação de todos os mistérios. Mistérios com dois mil anos e mistérios de sempre.

A ideia de um Deus que se faz Homem e que, como nós e connosco, caminha pela humilhação, pela dor e pela morte, de um Deus que se entrega à Terra para ser semente de vida e redenção e para que, como Ele e com Ele, possamos também ser semente de vida, não encontra senão frívolos paralelos nas incursões terrenas dos deuses pagãos, contadas por Homero, na Ilíada e na Odisseia, por Hesíodo, na Teogonia, ou por Virgílio, na Eneida.

Aí, dir-se-ia, também deuses e deusas coabitam com os mortais e com eles concebem semideuses e heróis: Zeus seduz Alcmena que dá à luz Herácles, ou Hércules, o dos Doze Trabalhos; Afrodite (a Vénus romana) gera, com Anquises, Eneias, príncipe troiano e proto-fundador de Roma; Aquiles é filho de uma ninfa do mar, Tétis, e de Peleu, rei dos Mirmidões. Mas todos esses semideuses e heróis são fruto das imaginárias excursões de um panteão de divindades quase lúdicas e com especialidades mirabolantes pelas terras dos homens e das mulheres. A semelhança com Cristo, com a irrupção de Deus na História, destes arquétipos úteis e a-históricos, destas criativas bengalas para perscrutar o enigma da contraditória natureza humana, destes lugares literários que, da Eneida aos Lusíadas, a literatura europeia também foi consagrando, é um mero exercício de hermenêutica crítica ou de semântica comparada.

Cristo e a narrativa evangélica da Sua Paixão, ou as quatro narrativas evangélicas da Sua Paixão, são outra coisa e de outra natureza: entram a fundo no Mistério, têm uma presença permanente na vida e na morte de cristãos e não-cristãos e um reflexo constante na vida icónica, literária, dramática e poética da Cristandade ao longo dos séculos.

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Assim, a nossa história pessoal e colectiva, e particularmente a História da Europa, dificilmente se conta sem a meditação da Paixão de Cristo, e sem a reflexão sobre o desconcerto do Mundo, o sentido do sofrimento e da morte e a esperança numa vida plena que a meditação da Paixão traz – desde os populares mistérios medievais à Pietá de Miguel Ângelo e às muitas versões e visões do planctus Mariae e da agonia do Deus feito Homem.

“Mas porque Deus quisesse, me é oculto, a nossa redenção só deste modo”

A Divina Comédia de Dante, como compêndio geral da História divina e humana mediada pelo grande poeta medieval, não podia ficar alheia ao mistério pascal da Redenção e da vitória sobre a morte. Dante concebe um homem criado à imagem de Deus (imago Dei), um homem consciente da sua liberdade de escolher entre o Bem e o Mal; e, uma vez criteriosamente arrumados os “maus” no seu Inferno, é no Paraíso que se aproxima do mistério da Redenção e do mundo dos que escolhem o Bem.

O facto de os desígnios de Deus serem um mistério e continuarem a sê-lo é ponto assente para o poeta, supremo devassador do oculto e sublime perscrutador de mistérios. Talvez por isso, depois de confessar a sua ignorância sobre a razão pela qual Deus, para resgatar os homens, decide sacrificar o Seu próprio filho, Dante entregue a Beatriz a explicação da Redenção – e do caminho de Deus-Filho pela vida e pela morte adentro. A imaginária amada do Poeta explica-a como um acto de amor e compaixão de Deus pelo Homem, a “mais nobre das suas criaturas”. Para isso, recorda a história da Criação e da Queda do Homem, enganado pelo seu Inimigo, e lembra que o ser humano, por si só, não podia já reabilitar-se das suas más escolhas para aceder à “vida em abundância”, à vida plena, à “intera vita”, para a qual Deus o criara. Assim, a reparação do pecado, a Salvação, tinha de vir do próprio Criador, “pelos Seus caminhos”, pela Sua “bontá” (bondade) e “larghezza” (generosidade).

Na visão dantesca do ciclo Paraíso-Queda-Redenção, só com o sacrifício do Seu Filho poderia Deus-Pai salvar o Homem da perdição com que o pecado original o carregara. Criado bom (“buono e a bene”), o Homem perdera-se, ao querer igualar-se a Deus, de forma vã e apressada; mas poderia salvar-se pelo sacrifício de um Deus encarnado, de um Deus feito próximo, feito Homem, capaz de carregar sobre os ombros os pecados da Humanidade, revelando a Sua verdadeira face. Tal como o pecado de Adão caíra sobre todos os seus descendentes, também, em Cristo, o Novo Adão, todos podiam ser salvos, ou devolvidos “a sua intera vita”.

Quanto aos danados que, à guarda de Satanás, habitavam os círculos das trevas que Dante imaginara e descrevera tão pormenorizada e eloquentemente, ali estavam e ali estariam por terem escolhido o mal em liberdade, ou por terem escolhido, em liberdade, a distância em relação ao Criador onde, para todo o sempre, crepitariam.

A Paixão, segundo Shakespeare

Shakespeare também não poderia ter sido indiferente ao mistério da Paixão de Cristo, tão presente nos enganos, desconcertos e calvários causados e suportados pelo Homem; e o seu teatro é o teatro de um autor cristão, instruído na cultura do cristianismo europeu dividido do tempo das guerras religiosas, numa Inglaterra marcada pela guerra das Rosas e pela reforma de Henrique Tudor.

Embora nas relativas boas graças do poder, o Bardo sabia-se sob a sua severa censura, prévia e póstuma, e ttratava de evitar quaisquer referências ou imagens que pudessem insinuar-se como manifestações de papismo – vistas com duplo horror pelas autoridades isabelinas, quer como abjecta emanação da corrupta igreja de Roma, quer como traição patriótica por conluio com os cúmplices do supremo inimigo da Inglaterra – o Áustria de Espanha. Talvez por isso, e pelas linhas tortas com que sempre se “reinventa o humano”, o tema da Paixão de Cristo, ou mais concretamente o tema da Pietá, surja inesperadamente trasvestido em Henrique VI.

Era um tempo de derrota, esse ano de 1453, o final da Guerra dos Cem Anos, com os ingleses vencidos pelos franceses. Sir John Talbot, o “Aquiles inglês”, condestável das tropas de Henrique VI em França, recebia o cadáver do filho, John Lisle, morto na batalha de Châtillon. O bravo guerreiro tomava então o cadáver do filho nos braços e chorava-o, numa reedição paternal da dor de Maria com o corpo de Jesus nos braços. E é abraçado ao filho morto que Talbot expira, em Henrique VI.

Nessa sua “peça histórica”, Shakespeare dava consideráveis voltas à História para servir os objetivos do drama. Não só reproduzia o planctus Mariae no abraço ao filho morto do terrível comandante inglês, temido pelos franceses pela sua bravura e crueldade, como punha John Talbot a enfrentar Joana d’Arc na batalha – para, no acto seguinte, matar por bruxaria a que viria a ser a santa padroeira de França. Os Talbot, pai e filho, tinham de facto morrido na batalha de Châtillon, em 1453, mas Joana d’Arc fora julgada e condenada à morte em 1431, 22 anos antes.

É, no entanto, em King Lear, a tragédia estreada em 1605-1606 (ou The True Chronicle of History of the Life and Death of King Lear and His Three Daughters na versão escrita de 1608) que Shakespeare recria com maior profundidade e subtileza a Paixão de Cristo. King Lear acaba mal, coroando com um trágico equívoco último muitos outros equívocos. Mas a peça, que pela profunda tristeza e desolação do desfecho viu a sua exibição recusada por longos anos, e que conheceu até versões alternativas com um “final feliz”, não deixa de transmitir a redenção dos que escolhem a porta estreita do Bem.

Com Lear, destronado por Regan e Goneril, as filhas más, Shakespeare torna presente, na humilhação de um rei sem reino nem poder, o Cristo humilhado pelo povo, coroado com uma coroa de espinhos e crucificado sob o dístico satírico “Rei dos Judeus”. O “Escárnio de Cristo”, que inspirou uma galeria de grandes artistas, de Fra Angelico a Tiziano e a Van Dick, reencena-se em Shakespeare na figura patética de Lear, o rei sem trono, traído pelos seus e enlouquecido de dor e humilhação. Mas é em Cordélia, a filha boa, que o Bardo reproduz a imagem do Cristo humilde, injustiçado e perseverante. Lear não vê a falsidade e a traição de Regan e Goneril nem o amor e devoção de Cordélia, que evoca o sal, o evangélico sal da Terra, para expressar o seu amor pelo pai. Habituado a um círculo de incondicionais veneradores, o Rei não vê nem ouve o que se passa, tomando as duas filhas intriguistas por boas e por má a filha que se recusa a entrar numa falaciosa competição pela sua aprovação e favor.

Como narrativa de terríveis maquinações e traições, de grandes torturas e sofrimentos, de grande desconcerto do mundo, de caos primitivo e selvagem, King Lear pode também ser o símbolo de um mundo pré-cristão ou de um mundo abandonado por Deus. E a Graça chega a esse mundo através do amor silencioso e incondicional de Cordélia, um amor inalterado perante a ingratidão e a loucura do pai, um amor capaz de ser “sal da terra” e “luz do mundo” numa terra que, mergulhada nas trevas, perdeu o sabor, um amor que, tal como o de Cristo, se mostra capaz de “redimir a natureza” (“Thou hast one daughter / Who redeems nature from the general curse”).

A peça acaba com a morte de Cordélia e a consequente morte de Lear, finalmente consciente de todos os seus loucos enganos. Shakespeare não ressuscita Cordélia, mas deixa-a como alegoria do Bem paciente e obediente que faz o seu caminho indiferente à incompreensão, à ingratidão e à traição. Cordélia atravessa todos os calvários por obediência e entrega ao pai, à verdade e à justiça; e de olhos postos num tempo outro e num bem maior, parece repetir com a vida as palavras que Jesus dirige a Pedro na última ceia: “O que Eu faço, não o entendes agora, mas hás-de compreendê-lo depois.”

O Cristo de Charles Péguy

Dante é um mestre visionário e profético, um cristão incendiário e colérico que não hesita em encerrar no Inferno os seus inimigos vivos, e até alguns Papas; Shakespeare é um reinventor da condição humana, um tratadista dos grandes limites da Terra e do Céu; Peguy, o terceiro autor cristão que me acompanha nesta Páscoa, é menos ilustre, mas não deixa de ser um grande poeta e um grande exemplo de católico empenhado no testemunho da Fé, e no amor a Deus, aos homens e à Pátria.

É um cristão e católico singular, que parece estar nos antípodas dos católicos conservadores da sua geração: um socialista cristão, alinhado, no caso Dreyfus, pelo lado que, para a Direita, era o lado do “traidor”. Isto no tempo de Maurice Barrès, de Édouard Drumont, de Charles Maurras. Péguy funda a Amitié Judéo-Chrétienne e vai morrer, voluntário, nas primeiras semanas da Grande Guerra. É Tenente de reserva e é dos primeiros a morrer em combate, a 5 de Setembro de 1914, em Villeroy.

Órfão de pai, educado na fé e nos “valores da velha França” (da decência, da disciplina e do trabalho bem feito) numa família modesta e na escola primária, Péguy vai ser depois aluno de Romain Rolland e de Henri Bergson. Tem o seu baptismo de fogo político no caso Dreyfus, num tempo de “beatitude revolucionária”. Milita em causas humanitárias, como a defesa dos arménios, funda uma revista e um grupo de reflexão e discute ideias com amigos e inimigos. Mas, em Setembro de 1908, escreve a Joseph Lotte, um seu amigo escritor e católico: “Je n’ai pas tout dit… J’ai retrouvé la foi… Je suis catholique”.

Era o termo de um longo caminho, em que a leitura da Paixão segundo S. Mateus e da Imitação de Cristo tinham sido determinantes.

Péguy é um construtor de catedrais, mas é também um iconoclasta de mitos antigos e modernos. É um católico que critica o clero do seu tempo, acusando-o de desconhecer a condição humana, mas é também um crítico insistente e sem medo da ideia de progresso, “a grande lei das sociedades modernas”, e da própria modernidade, que considera um tempo fútil, um “reino de bárbaros” embrutecidos e despreocupados, que não conhecem o conceito da irreversibilidade e tem por Deus o Dinheiro. A modernidade não é laica, é anticristã; e é governada por um “Partido intelectual” que controla as universidades, as revistas, os jornais, a opinião, e que, através da opinião, condiciona a política e os decisores das políticas.

Foi há 120 anos, mas parece que foi ontem…

Péguy era um socialista cristão, um patriota francês da Terceira República que, pela leitura mística e a peregrinação interior, evoluiu para o nacionalismo e para o catolicismo.

A Paixão de Cristo é para ele, o ponto-chave da grande História de Deus e dos Homens, e a chama da fé nova parece abri-lo a fecundos atrevimentos interpretativos. Cristo é, para ele, a suprema comunhão com a miséria e o desconcerto do mundo; e o cristão está ligado ao corpo de Jesus, de um modo físico, místico, misterioso, que faz com que o sofrimento, a humilhação, a doença e a morte, o projectem para junto Dele na noite do monte das oliveiras.

Embora o tema perpasse em toda a obra poética de Péguy, é no volume Clio 1 – Dialogue de l’histoire et de l’âme païenne, (um texto póstumo publicado pela primeira vez em 1955), que encontra a sua expressão mais acabada. Recém-convertido (o texto original é de 1909), Péguy mergulha aí no “mistério central do cristianismo, na encarnação redentora”; e com o à-vontade que só a Graça da fé profunda explica, avança por cima de quase vinte séculos de teologia e exegese polémica de Doutores da Igreja e filósofos agnósticos para, como Inácio de Loyola, se meter na pele de Cristo nas horas terríveis de Getsemani. Depois, melhor que muitos teólogos, chega à razão da terrível agonia e tristeza do Deus feito Homem nas Suas horas finais, da “Tristis, tristes usque ad mortem” do Evangelho de Mateus. Diz Péguy que Cristo estava assim porque sabia que o seu sofrimento salvaria muitos, mas que não salvaria todos; e que muitas almas se perderiam, apesar daqueles últimos momentos em que, aparentemente, “o Pai o abandonara”.

Quando li Péguy pela primeira vez, há cerca de sessenta anos, foi esta a ideia que mais me tocou e impressionou. Até hoje.

Papini e a última esperança

Escreveu recentemente o Papa Francisco que o profeta Elias foi talvez o primeiro a descobrir que o nosso Deus era sempre “um Deus das surpresas, até mesmo na forma como passava e se fazia sentir” – não no vento impetuoso, não no terramoto, não no fogo, mas na brisa suave –, e que era para essa “voz subtil do silêncio” que devíamos “preparar os nossos ouvidos”.

Mas estaria a ouvir bem Giovanni Papini – um outro teólogo improvisado e também de conversão tardia, como Péguy – quando, contrariando dois mil anos de Teologia, apresentou uma possibilidade final para a História humana e divina capaz de responder à tristeza de morte do Cristo do poeta francês e de pôr fim aos suplícios dos habitantes dos infernos de Dante?

Em 1953, Papini, autor da Storia di Cristo e escritor católico consagrado, propunha, como possibilidade, o perdão ou a amnistia geral de todos os condenados ao Inferno, incluindo do próprio Lúcifer, por um acto de infinita misericórdia de Deus. O livro, Il Diavolo, foi um êxito editorial, com edições sucessivas (doze em dois meses), e levantou grande polémica, com as autoridades eclesiásticas a hesitar entre a surpresa e o choque perante a heresia do escritor católico. Papini, que nascera em Florença em 1881, “autodidata, pobre, malvestido, solitário, esquecido”, e que estava então quase cego e paralisado, aguardou disciplinadamente o veredicto eclesial, argumentando que não queria fazer doutrina ou substituir-se à doutrina da Igreja e aos seus ensinamentos, mas acrescentando que aquilo que “não era lícito ensinar como verdade certa e segura”, podia e devia ser “admitido como esperança humana e cristã”.

Um Inferno vazio e um Céu cheio? Quem sabe, talvez o aviso no início da peregrinação dantesca para que os que ali entravam abandonassem toda a esperança pudesse ser revogado e ficasse a misericórdia última, a misericórdia do “Deus das Surpresas”, movido pela infinita tristeza do seu Filho na noite de Getsemani.

Seja como for, e ainda que, por vezes, não consigamos ouvir a voz subtil de Deus Pai ou a oiçamos mal, sabemos que só irmanados no Horto a Cristo e à humanidade que sofre, só fazendo o que depende de nós e entregando a Deus o que Dele depende, podemos ser resgatados.