A propósito da teatral aparição da deputada do Livre e do seu assessor no parlamento, Helena Matos transcreveu as palavras proferidas numa concentração convocada pelo Colectivo Resistimos. Não obstante o carácter alegadamente espontâneo do comício de apoio a Joacine Katar Moreira e o exíguo número de participantes, a comunicação social não faltou ao evento. Mas, ao invés, não registou as várias manifestações que, no passado 26 de Outubro, um pouco por todo o país, reuniram vários milhares de militantes pró-vida. Para uma certa imprensa, pelos vistos, todos os activistas são iguais, mas uns são mais iguais do que outros.
Na concentração de apoio à deputada do Livre, que pretendia também denunciar o racismo e alertar para a chegada do Chega, valha a redundância, ao parlamento, alguém, cuja identidade não foi revelada, teceu algumas considerações sobre a bandeira da República portuguesa. Disse: “Infelizmente nem todas as bandeiras são internacionalistas, como nós sabemos. A bandeira portuguesa, permitam-me a sinceridade, ela tem pouco ou nada de internacionalista. A bandeira portuguesa, na verdade, ela é do final do século XIX mas reparem uma coisa: ela, na verdade, ela exclui determinados grupos, ela tem uma vertente religiosa bastante vincada, ela ao mesmo tempo exalta uma forma de encarar o mundo que é uma forma racista e imperialista. E na verdade é uma questão de olhar os símbolos da bandeira. Falamos das quinas que representam as chagas de uma determinada identidade …”
É de defender, em todos os casos, a liberdade de pensamento e de expressão. Porém, quem fala em público tem que aceitar o público escrutínio do seu discurso. Seria racismo discriminar um orador só porque é de origem africana: se essa sua condição não pode ser usada para a sua vitimização – até porque não representa os que foram escravizados ou explorados – também não pode ser invocada como garantia de impunidade, embora haja quem goste de acenar com o espantalho do racismo sempre que se critica uma alocução de alguém de outra etnia. A verdade, como o sangue ou a dignidade humana, não tem cor nem raça.
É estranho que se lamente que a bandeira nacional não é ‘internacionalista’ (sic), porque nenhuma bandeira nacional o é. São internacionais as insígnias das comunidades multinacionais – como a União Europeia – ou das organizações internacionais – como a ONU, a OUA, a NATO, a Cruz Vermelha, etc. – mas não dos países, cujas bandeiras são, naturalmente, nacionais.
Ao contrário do que se disse nesse comício, a bandeira da República portuguesa é ‘internacionalista’, mais até do que outras bandeiras nacionais. Com efeito, a esfera armilar, sobre a qual assenta o escudo nacional, outra coisa não é do que uma representação do globo terráqueo. Portanto, a bandeira de Portugal inclui uma representação do nosso planeta e, neste sentido, pode-se dizer que é ‘internacionalista’.
Para além da esfera armilar, há mais uma nota internacional na bandeira da República portuguesa: a sua partição em dois campos desiguais, um verde e outro encarnado. É sabido que esta composição reflecte a tendência iberista do primitivo republicanismo português, sendo que o verde simboliza Portugal, enquanto o vermelho, que por isso ocupa uma maior extensão, representa a vizinha Espanha. Portanto, também sob esta perspectiva, a bandeira portuguesa não é nacionalista, na medida em que representa os dois Estados ibéricos.
Outro erro de palmatória – se as houvesse, claro! – é o de dizer que a actual bandeira nacional “é do final do século XIX”. Como se lê no nº 1 do artº 11º da Constituição da República Portuguesa, “A Bandeira Nacional, símbolo da soberania da República, da independência, unidade e integridade de Portugal, é a adoptada pela República instaurada pela Revolução de 5 de Outubro de 1910”. Não é preciso ser historiador para saber que a bandeira de um regime implantado no século XX não pode ser, obviamente, do século XIX… Também não é preciso ser monárquico para reconhecer que a actual bandeira é mais republicana do que portuguesa, ou seja, representa sobretudo o regime instaurado em 1910, como a bandeira da União Soviética ou da Alemanha nazi se identificavam mais com esses regimes, do que com a tradição histórica desses países.
No improvisado discurso contra a bandeira nacional, também se disse que “na verdade, ela exclui determinados grupos, ela tem uma vertente religiosa bastante vincada, ela ao mesmo tempo exalta uma forma de encarar o mundo que é uma forma racista e imperialista”. É lógico que uma bandeira nacional exclua determinados grupos, porque só representa a própria nação: de facto, os pigmeus e os esquimós não estão contemplados na nossa bandeira, mas não é por isso que a bandeira é racista, ou imperialista.
Que a actual bandeira portuguesa “tem uma vertente religiosa bastante vincada” também não corresponde à verdade. As quinas “representam as chagas de uma determinada pessoa”, mas a sua forma em cruz – a primeira insígnia nacional foi, precisamente, uma cruz azul sobre um fundo branco, como é na actualidade a bandeira da Finlândia – apresenta-se agora muito mitigada pelos cinco escudetes. Por outro lado, a representação das chagas não é perceptível, dada a sua estilização, que as reduziu a cinco pequenos círculos brancos dentro de cada escudete e, por isso, não é susceptível de ofender quem não é cristão, crente de outra religião, agnóstico ou ateu.
O que é excepcional na bandeira portuguesa é, precisamente, a escassez de símbolos religiosos que, pelo contrário, dominam nas bandeiras de muitas outras nações: Austrália, Dinamarca, República Dominicana, Eslováquia, Ilhas Fidji, Finlândia, Geórgia, Grécia, Islândia, Malta, Noruega, Nova Zelândia, Suécia, Suíça, Tonga e Tuvalu. A Grã-Bretanha, não satisfeita com uma única cruz na sua bandeira, até tem duas: a tradicional e a de Santo André, em aspa!
Os símbolos nacionais devem ser respeitados. O Decreto-lei n.º 150/87, de 30 de Março, que regula a utilização da bandeira, reconhece que os símbolos nacionais são bens jurídicos dignos de tutela penal. Já em 1910, o artigo 3º do decreto com força de lei de 28 de Dezembro determinou que «aquele que, de viva voz ou por escrito publicado ou por outro meio de publicação, ou por qualquer ato público, faltar ao respeito devido à bandeira nacional que é o símbolo da Pátria, será condenado na pena de prisão correcional de três meses a um ano e multa correspondente e, em caso de reincidência, será condenado no mínimo de pena de expulsão do território nacional, fixado no § único, do artigo 62º, do Código Penal». Actualmente, o artigo 332º do Código Penal pune com pena de prisão até dois anos, ou com pena de multa até 240 dias, «quem publicamente, por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por outro meio de comunicação com o público, ultrajar a República, a bandeira ou o hino nacionais, as armas ou emblemas da soberania portuguesa».
A bandeira e o hino são convencionais, mas devem traduzir a identidade nacional, na sua tradição histórica e realidade actual. Devem ser honrados, mas não são tabus, porque são susceptíveis de reforma: a Rússia pós-comunista e a Alemanha posterior ao nazismo alteraram as suas bandeiras nacionais, porque conotadas com esses regimes totalitários. Também a letra militarista do hino é questionável, até porque, felizmente, Portugal é um dos poucos países que não festeja a sua nacionalidade na data de algum feito bélico, mas na efeméride do maior poeta português. A actual bandeira, que está sobretudo associada ao Estado Novo, também deveria ser menos ideológica e mais consensual, menos do regime e mais nacional.
Ultrapassada a ilusão iberista – que, por sinal, teve muito infeliz expressão cromática na bandeira da República portuguesa – bem como o império colonial, simbolizado pela esfera armilar, a imagem de Portugal ficaria a ganhar se, na próxima revisão constitucional, se substituíssem as cores actuais pelo azul e branco tradicionais, com o escudo das quinas e dos castelos, que é o principal “símbolo da soberania […], da independência, unidade e integridade” nacional, ex-libris da nossa pátria e compêndio de nove séculos da gloriosa história de Portugal.