1. Há poucas semanas a atenção global estacionou por uma tarde nas chamas de Notre Dame, em Paris. Um coro de pena e lamentos embora hoje, seja já com um desinteresse distraído que vagamente se ouve dizer que “houve uma missa” ou que alguém sugeriu “colocar uma piscina” no ex-tecto da Catedral, quando se iniciar a reconstrução.
E há dias, a atenção do país – instituições, escritores, políticos, literatos, amigos próximos, longínquos, povo, mirones, media — fixou-se na despedida de Agustina Bessa Luís. Brevemente: quando no dia seguinte, por sugestão desinteressada mas inteligente de alguém, propus a um meio de comunicação social a publicação de um quase desconhecido texto da escritora, a resposta foi “ah mas agora já não vai ‘dar’, estamos com os 30 anos de Tienamen”, e era verdade: estavam todos na China.
2. Se apenas há força convocatória no célere momento conhecido por actualidade — mas logo enxotado para fora do écran e da vida, porque essa é a regra — a quem interessa o que conta? A quem interessará de facto esta incerta paisagem nossa, humana, política, económica, social, fora do reduto dos “paisagistas” dela encarregues ?
Que fica deste borbulhante entra-e-sai, como no carrossel das feiras para além de mentes desapossadas? Nada? Que se guarda dos que morrem, sempre heróis com glória e sem mácula — nenhuma mácula — no dia em que partem, embora nos dias seguintes, tempos depois, anos depois, ninguém lhes evoque nem nome, nem legado? E que se retém do que seria obrigatório reter e as coisas da vida servirem de facto para alguma coisa em ver de se dissolverem pelos ares e pelos ventos?
3. Como quase toda a gente pelei-me pela vitória de Portugal na Taça das Nações-excelente jogo, óptimo ritmo, o nosso onze muito concertado. Mas como em um daqueles não anunciados furacões, fiquei aturdida com o “depois”: recitações gloriosas, incessantes evocações patrióticas, louvores, bandeiras, hinos e o nome de Portugal declinado em todos os tons, por entre o elogio ditirâmbico e a lágrima — lágrimas verdadeiras.
Não é novo nem de hoje, dirão, mas nessa noite, depois de felicitar Fernando Santos, deu-me para prestar boa atenção ao que vi e ouvi aos portugueses. E foi mau e foi pena.
Caramba: que foi preciso acontecer – ir acontecendo — de tão sulfúrico no país para ocorrer uma demissão da inteligência, da sensibilidade, da cidadania, da responsablidade, desta envergadura? Que soma de erros, faltas e omissões se conjugou entre dirigentes, educadores, pensadores, governantes, para obter tão devastadoras consequências? Para só trinta por cento dos portugueses ter achado a “Europa” merecedora de uma deslocação às urnas, mas mais do dobro ter confundido a pátria com um golo e um voto com uma chatice? Onde se vê em Portugal – e aplicado a quê? — este mesmo ímpeto, fornecimento de energia, disponibilidade grátis, rendição voluntária e orgulho sem dique a controlá-lo, que observei a saída do estádio naquela noite?
Quantos daqueles espectadores — prontos para tudo em nome de golos, livres e cantos — eram capazes de um esforço pela sua comunidade, um voluntariado que integrasse ou acolhesse, colaborações em zonas, bairros, escolas, museus? De uma intervenção cívica séria em nome desse país que tanto os embriaga e solicita nos relvados, mas parece que apenas só nos relvados? Haveria certamente muito pasmo ao simples enunciado de algumas destas digamos, solicitações, e temo que a poucos ocorra pôr a render energias e disponibilidades para além de “servir “o futebol com a mesmíssima energia e a mesmíssima disponibilidade.
4. Deu enfim que pensar aquele espectáculo ao vivo e em directo de pura apologia da menorização. Sim, mesmo se o país assiste (consolado) àquilo todos os dias, espanta-me que poucos se desconsolem com os consolados. Apetece perguntar sem ofender: aquela (tanta) gente, para além “daquilo”, é capaz de quê?
E que fica do que se passa: alguma reflexão, algum alerta, alguma ideia?
5. Nota um: ainda João Miguel Tavares? Ainda: muito mais do que o que ele disse – muitas vezes tão capturado por uma aguda fulanização… — interpelou-me a absoluta novidade de ter sido alguém como ele a dizê-lo. Alguém de fora dos autorizados oficiais. Outra geração, outro tom, outros interesses, outros objectivos. Outro “ver”. E depois que se discuta. E uma liberdade já não condicionada por várias “obrigações” (escolho uma: dizer e ensinar que se deve ter vergonha de oito séculos de caminho até Abril de 1974 e ensinar e dizer que a seguir, todos os amanhãs cantaram. E cantam).
6. Nota dois: e agora o resto, que é muito: não se pode ter a ingenuidade de ignorar, disfarçar ou fazer de conta que João Miguel Tavares não fez um arranjão a Marcelo. Fez: disse em voz alta e com audiência nacional o que ele, Marcelo, não quer, não pode ou não ousa dizer (mas obviamente pensa e quer que se diga). E não por acaso, quis “isto” em ano de eleições e a três meses da sua realização. Com a direita moribunda mas um Presidente tão metediço noutros (alheios) poderes, um dia a esquerda acordará com mau sabor na boca.