1. Um pequeníssimo grupo de pessoas decidiu esperar pelo Presidente da República à porta de um edifício público ostentando tambores, buzinas e faixas com as subtis palavras “Vergonha”, “Roubo” e “Vigarice”. Vendo o Chefe de Estado (reparem: o Chefe de Estado), aproximaram-se e um deles gritou, a dois centímetros do presidencial nariz: “Já chega! Já chega! Eu quero o que é meu!”.

Perante isto, Marcelo Rebelo de Sousa teve a típica reação de quem passa as madrugadas acordado a fazer cálculos para a sua recandidatura. Não querendo desagradar a uma mosca (menos ainda a eleitores com as cordas vocais no volume máximo), no dia seguinte o Presidente da República dirigiu-se aos autores do protesto (que lhe fizeram nova espera) e, com o estilo descontraído que distingue um verdadeiro estadista, convidou-os para “conversarem um pouco” no Palácio de Belém e assegurou: “Então vão ligar-lhes para combinar um dia que vos dê jeito para irem”.

Há aqui várias perplexidades, mas, tendo em conta a necessidade de exercer alguma caridade cristã, vamos concentrar-nos apenas numa: afinal, o que sabe o Presidente da República sobre o que se passa no país? O Presidente da República só percebeu agora que há um grupo de pessoas a que se convencionou chamar “lesados do BES”? O Presidente da República só percebeu agora quais são os motivos de queixa do grupo de pessoas a que se convencionou chamar “lesados do BES”? O Presidente da República só percebeu agora que o grupo de pessoas a que se convencionou chamar “lesados do BES” estava a tentar conseguir uma reunião no Palácio de Belém?

Seguramente, o nosso sobredotado Presidente já tinha percebido tudo isso há muito tempo. Então, se é assim, o que mudou? Foram os tambores, as buzinas e os berros? Se sim, ficamos esclarecidos: quem se sentir igualmente injustiçado pelo governo, pela banca ou pelo universo deve fazer uma espera ao Presidente da República e berrar-lhe ao ouvido com as televisões por perto. Pelos vistos, resulta.

2. Depois de percebermos como o Presidente Marcelo ouve, vamos tentar perceber como o Presidente Marcelo fala. Confrontado com as várias ligações familiares no Governo de António Costa, o Presidente da República afirmou que se limitou, coitado, a receber no colo a decisão do seu antecessor, Cavaco Silva, “que foi a de nomear quatro membros do Governo com relações familiares, todos com assento no Conselho de Ministros”. Mais: na sua inocência, Marcelo “partiu do princípio de que o Presidente Cavaco Silva, ao nomear aqueles governantes, tinha ponderado a qualidade das carreiras e o mérito para o exercício das funções”. Juro pela minha saúde que Marcelo Rebelo de Sousa não se riu enquanto dizia isto. Está, portanto, encontrado o responsável por toda a trapalhada genealógica que tem afligido o Governo e o PS: a culpa é, obviamente, de Cavaco Silva. Às vezes, somos todos muito burros: como é que ninguém se tinha lembrado disto antes?

3. Pedro Nuno Santos, Duarte Cordeiro, Marcos Perestrello, Pedro Delgado Alves. A polémica das ligações familiares no Governo está a atingir em cheio o coração e o cérebro da nova geração do PS. Surge, por isso, uma dúvida inquietante: no futuro, as coisas vão ser assim?

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