O primeiro ministro de Portugal acusou há dias o ministro das finanças holandês de ter sido repugnante por este ter alegadamente sugerido que se investigasse os défices e as dívidas públicas de Espanha e Itália.

Não vou qualificar o adjectivo, nem sequer o facto de ter sido dirigido a um ministro de uma pasta e não a um dos seus pares no CE, nem ainda o facto de, aparentemente, só após a referida reunião o primeiro ministro de Portugal ter optado por intervir e nos termos em que o fez. No meu entender isso seria entrar também no taticismo político esquecendo os princípios que devem nortear a política. Por isso, por aqui me fico quanto à intervenção de António Costa.

Já no que diz respeito à suposta falta de solidariedade europeia criticada pelos países do sul e tão propalada pelos media por estes dias, considero que temos de fazer primeiro o trabalho de casa antes de tecermos comentários negativos sobre a solidariedade europeia e anteciparmos o apocalipse da União Europeia.

Antes de mais, há que separar as iniciativas de solidariedade europeia no âmbito do Eurogrupo, e que por isso têm a ver especificamente com os países que aderiram ao euro, das iniciativas oriundas da União Europeia. Confundi-las, ou se quisermos, misturá-las, não é um bom começo. A UE é composta por 27 países e o Eurogrupo por 19. Quer isto dizer que decisões respeitantes ao Eurogrupo têm a ver essencialmente com a moeda comum, o euro, e não afectam os restantes membros da UE. Já as medidas no âmbito da União têm a ver com todos os países membros. Por isso, se quisermos falar de solidariedade, temos de distinguir a solidariedade dos países que fazem parte do Eurogrupo e a dos países integrantes da EU. Se não existisse solidariedade no Eurogrupo, estaria em causa a moeda comum ou a participação de alguns países no euro, mas não necessariamente no projecto europeu que tem um âmbito substancialmente mais alargado.

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Vamos então à questão da solidariedade. Perante situações excepcionais como as que vivemos nesta altura, os países membros têm o direito de esperar solidariedade da União Europeia. Esta, deveria ter estado atenta e intervindo na Itália logo que esta necessitou de ajuda. Infelizmente, cada país preocupou-se consigo próprio e não deu a mão a quem mais precisava. Não foram a Alemanha, a Holanda ou a Finlândia que não acorreram a ajudar a Itália. Foram todos e foi a Comissão Europeia, que desvalorizou a dimensão da catástrofe. As palavras e as medidas recentemente anunciadas pela Presidente da CE mostram o reconhecimento dos erros, dos egoísmos nacionais iniciais e dão um sinal de vontade de rectificar o caminho inicialmente seguido.

Mas, não é essa solidariedade que tem sido exigida pelos países do sul. O tema é recorrente. Sempre que há necessidade de financiar uma economia necessitada do sul da Europa surgem inevitavelmente os eurobonds, agora sob a forma de coronabonds. O que são estes “bonds”? são endividamento que poderá ser contraído por qualquer país do Eurogrupo (ou por outros da UE, mas nesse caso sujeitos ao risco cambial) e cujo pagamento é garantido por todos os membros sem quaisquer condições para o beneficiário dos empréstimos. Porque é que a Alemanha, Holanda e outros países do Eurogrupo não querem esta forma de financiamento? Porque não se pode pedir a ninguém que avalize uma dívida sem condições.

Que se saiba, nem Alemanha nem Holanda se manifestaram contra a solidariedade da UE nem sequer sobre formas de solidariedade no âmbito do Eurogrupo. Com a falta de jeito habitual – ou de paciência para a retórica dos países do sul – Alemanha e outros países do norte não explicaram de forma simples e clara ao comum cidadão porque são contra os eurobonds e são a favor de outras formas de dívida. Para eles é tão óbvio que nem precisam explicar. Mas, se o fizessem, a retórica dos países do sul teria maior dificuldade em passar.

Desde a crise de 2008, Alemanha e Holanda, como aliás a maioria dos países fizeram os ajustamentos necessários para poderem fazer face a situações como as que agora vivemos. Aproveitaram os anos de crescimento económico e diminuíram de forma significativa o peso das respectivas dívidas públicas no PIB. Juan Ramon Rallo, economista, jurista e professor universitário espanhol falou há dias sobre este tema, deixando clara a mensagem da cigarra e da formiga. Escusado será dizer quem foram as cigarras e as formigas. Os países do norte avisaram repetidamente os países do sul que teriam de amealhar para os tempos difíceis que inevitavelmente chegariam, mas estes não lhes deram ouvidos. Seguiram emitindo dívida, não para resolver problemas como o que agora vivemos mas para manter e expandir uma forma de fazer política assente no crescimento do Estado e no gasto público. Essa actuação é inconsistente com os acordos firmados pelos países membros do euro no Pacto de Estabilidade e Crescimento, no qual se comprometeram a não terem défices superiores a 3% nem dívida pública acima dos 60% do PIB. Estes critérios têm por base a manutenção de uma moeda sólida e níveis de inflação baixos. Recomendo a este propósito um artigo no Público de António Bagão Félix.

Apesar das condições fixadas, foi concedida flexibilidade aos países do euro para fazerem face a situações especiais. São os célebres procedimentos por défice excessivo, em que é dada margem de manobra aos países para incumprirem as regras acima, mas definido um quadro de actuação tendente à resolução do problema a prazo. Escusado será dizer que os países do sul têm incumprido sistematicamente aqueles critérios e não têm, na sua maioria, mostrado intenção de implementar as medidas tendentes ao cumprimento futuro.

É neste quadro que se deve apreciar a posição dos países do norte face aos eurobonds: se até hoje os países do sul incumpriram os critérios que assumiram para fazerem parte do euro, se incumpriram em tempo de vacas gordas, será que devemos passar-lhes um cheque em branco a pretexto de se tratar de uma crise não provocada por eles e de dimensões nunca imaginadas? Emprestar sem condições e depois ter de assumir o pagamento porque obviamente eles não terão condições para pagar as suas dívidas dado estarem tão endividados e nada terem alterado para poderem vir a poder pagá-las?

Chegados aqui poderíamos dizer que no seio do euro não existe solidariedade mas que a UE tem outros mecanismos de solidariedade que já está a implementar. Não haveria solidariedade no grupo restrito do euro, mas havia na União Europeia. Problema semi-resolvido.

A questão é que mesmo no seio do euro existe solidariedade e essa solidariedade vai até aos 750.000 milhões via BCE e 500.000 milhões via MEE (Mecanismo Europeu de Estabilidade) como refere Juan Ramon Rallo. Qual a diferença para os eurobonds? É simples, no caso do BCE se o país beneficiário não mostrar que vai implementar medidas de ajustamento das finanças públicas, este deixa de lhe comprar dívida e os juros da sua dívida sobem. No caso do MEE, existem mesmo condições que têm de ser cumpridas, sendo por isso mais restritivo.

Mas, então se Espanha, Itália e os restantes países do sul podem contar com a solidariedade europeia e até do Eurogrupo pela via do BCE e do MEE, porquê este alarido todo à volta da falta de solidariedade e da ameaça do fim da UE?

Por uma razão simples: os países do sul querem endividar-se sem condições. Não querem dívida para resolver uma crise sanitária e depois implementarem medidas de saneamento do Estado. Querem prosseguir as suas políticas de estatização da economia, de aumento dos gastos públicos e ao mesmo tempo beneficiar de uma moeda, da taxa de juro e das garantias que outros assegurarão. Por outras palavras, os países do sul não querem solidariedade do norte, querem o dinheiro do norte para continuarem a gastar á tripa forra, sem fazerem as reformas que os outros fizeram depois da última crise.

É óbvio que para a maioria das pessoas ficou a imagem da frieza, racionalidade e egoísmo do norte perante o infortúnio do sul, que por acaso atinge todos. O marketing, quando bem feito, tem essa capacidade de hipnotizar muita gente, diria mesmo, quase toda a gente.

Mas, em boa verdade, quem é o repugnante afinal?