O Banco Central inglês subiu na quinta-feira a sua taxa de juro de referência em 0,50% para um valor de 1,75%, naquela que foi a maior subida dos últimos 27 anos. Este era um movimento previsível e que os mercados antecipavam. Porém, não foi esta a verdadeira notícia do anúncio do governador inglês. Os comentários aos motivos que levaram à subida são muito mais relevantes e não devem ser ignorados.
A inflação que afinal não é conjuntural
Olhando para as palavras do governador do Banco Central inglês, espera-se uma inflação de 13% ainda este ano na economia inglesa. Atualmente em 9,4%, os governantes em Londres esperam que este indicador atinja o seu máximo desde 1980 no último trimestre do ano, assumindo, de forma implícita, a ineficiência no curto prazo das subidas consecutivas das taxas de juro. Já tive oportunidade de escrever o porque deste impacto tão limitado. Na realidade, esta crise inflacionista teve um contributo muito mais relevante no lado dos custos de produção e das matérias primas que do lado do consumo.
De forma muito simplista, os preços sobem quando a procura aumenta de tal forma que pressiona a oferta, levando a uma “escassez” de produto e a uma consequente subida dos preços; ou quando os custos de produção crescem levando os produtores a um aumento de preços. O impacto dos preços da energia é relevante nesta equação porque em todas as indústrias o custo energético tem um peso elevado no custo final dos produtos produzidos.
Uma subida de taxas de juro torna o dinheiro “mais caro”, provocando uma contração no investimento e no consumo. Não entrando em detalhes explicativos, até porque muito já se escreveu sobre este tema, quem tem disponibilidade financeira tem uma maior motivação para a poupança e consequente retorno de depósitos, agora, melhor remunerados; e os bancos emprestam com valores mais elevados de juros o que afasta investidores e consumidores de se endividarem. Isto funciona para estancar a inflação quando a mesma resulta do aumento do consumo. No caso atual não terá grande impacto na inversão do aumento dos custos de produção. O que assistimos não é uma escassez de produto que não satisfaz a procura existente, mas uma escassez de matérias primas, mão de obra e preços energéticos que tornam insustentável a manutenção dos preços.
Recessão, a palavra proibida
Há cerca de uma semana, a Reserva Federal norte americana divulgou os dados referentes ao segundo trimestre para a economia dos Estados Unidos. Nessa apresentação, os investidores foram confrontados com uma contração do PIB americano em 0,9%. Este facto poderia ser apenas um sinal negativo resultante de um agravamento da economia por via da guerra, se não fosse o facto de ser o segundo semestre consecutivo em que o PIB registava valores negativos. Ou seja, tecnicamente os EUA entraram em recessão.
A razão dada para se fugir à palavra proibida foi o bom desempenho dos rácios do emprego e a conjuntura internacional responsabilizando a guerra na Ucrânia e os constrangimentos que daí decorrem para as economias. Os economistas apressaram-se a afirmar que historicamente tinha sido possível subir as taxas de juro sem provocar uma recessão e que se deveria tentar alcançar uma “soft landing” da economia. Tenho esperança (talvez mesmo já só fé), mas muitas dúvidas.
A enorme diferença para o comunicado inglês veio na afirmação, sem aspas ou dúvidas, da palavra recessão para a economia britânica. Os ingleses, no seu estilo muito pragmático acabaram por afirmar o que todos já víamos, mas que por algum motivo que não consigo entender os nossos políticos continuavam a negar. A projeção inglesa aponta o pico dessa anunciada recessão para o terceiro trimestre de 2023, confirmando a base estrutural desta crise e negando as dezenas de anúncios de inflação conjuntural e de impactos de curto prazo resultantes da pandemia e da guerra. A palavra proibida foi finalmente assumida e talvez agora se possa começar a fazer algo para ajudar as pessoas e a economia.
As pessoas, acima de tudo, as pessoas
Em Agosto do ano passado comecei a escrever sobre o risco real de termos um evento de estagflação, ou seja, alta inflação, contração da economia e alto desemprego. A partir de Outubro, tornou-se claro que teríamos uma crise energética e inflacionista que não se iria resolver com promessas ou assobios para o lado. Ao longo desses meses fui pedindo aos responsáveis políticos que falassem a verdade porque, pelo menos, os portugueses podiam prepara-se para os cenários difíceis que se adivinhavam. Recordo, a este propósito três artigos escritos no Observador que infelizmente foram ignorados: “O porque da crise energética” (17/10/2021), “Estagflação, a verdadeira crise que ninguém quer ver” (8/11/2021) e “Crise, Inflação e a importância de dizer a verdade” (15/11/2021).
Além dos artigos que escrevi aqui, alertei de forma intensa os responsáveis políticos do meu partido. No congresso de Guimarães tive oportunidade de reforçar esse alerta ao recém-eleito líder, algo que voltei a fazer por mais 3 ocasiões. Por algum motivo, que talvez prefira não entender, fui ignorado tendo sido dada prioridade a congressos para alterar estatutos. Apenas no último mês o governo começou a avisar que poderíamos ter tempos difíceis pela frente, mas sem apresentar medidas concretas para inverter o que quer que seja.
A sociedade dividiu-se em batalhas ideológicas estéreis e orquestradas que nos afastaram do verdadeiro problema. SNS versus Privados, Géneros versus família Mesquita Guimarães ou Aeroporto de Lisboa versusalgo que ainda ninguém percebeu muito bem. Tudo serve para que se esconda o enorme iceberg com o qual nos arriscamos a colidir de frente, tudo ao som de festivais de Verão que fazem o papel da famosa orquestra que tocou até a última parte do navio se afundar.
O verdadeiro flagelo do nosso mundo é a pobreza. Mais que as guerras, as pandemias ou o clima, é a pobreza que mais mata, que mais separa e que mais nos envergonha enquanto seres humanos (ou deveria envergonhar). O que a classe política teima em ignorar é um problema que pode elevar de forma exponencial os rácios da pobreza e criar uma sociedade ainda mais dependente e desnivelada. Talvez fosse mais fácil combater a pobreza se todos os pobres tivessem crises de género ou fossem loiros de olhos azuis.
Por muito que custe aos populistas, os muitos ricos continuaram a ser ricos (com exceções difíceis de explicar) e os pobres (infelizmente) não irão perder essa classificação. O drama vai estar na nossa classe média, que sendo na sua maioria baixa se comporta como ricos. Uma inflação acima dos 10%, a subida dos juros e o aumento dos encargos financeiros e o aumento brutal dos custos das famílias, vão resultar na delapidação de uma classe média sem rede de apoio ou plano alternativo. Preocupa-me, e muito, não apenas a pobreza que vamos ver, mas sobretudo aquela invisível, coberta por um lençol de vergonha social e que resultará no agravamento de uma crise de saúde mental que Portugal já atravessa em silêncio.
Difícil não é impossível
Escrevi e volto a escrever, a economia resulta de ciclos, e a história repete-se por vezes. A estagflação do início da década de 80 resultou de uma crise energética e de uma consequente crise económica da segunda metade da década de 70. Se não olharmos para este problema de forma séria, se nada for mudado, se estruturalmente não preparamos verdadeiros impactos para a economia, iremos sentir uma das maiores crises económicas dos últimos 40 anos.
As prioridades que todos os dias nos invadem as casas através da comunicação social dando voz ao governo e aos partidos deverão passar a ser as pessoas e não os interesses e o sectarismo das “esquerdas” e das “direitas”. Não será nada fácil, o impacto será sentido por todos, porém há caminhos possíveis para dores menores.
Alguns exemplos passam pelas soluções para a crise energética atual, onde aprovar as sanções ao gás russo, diabolizar a indústria petrolífera e depois votar contra a possibilidade do nuclear é condenar o país e os portugueses. A falácia argumentativa e o populismo não devem toldar decisões responsáveis dos nossos governos. A evolução tecnológica veio oferecer à energia nuclear uma segurança e soluções que não tinha há 30 anos atrás. A classificação de energia verde pela União Europeia mostra-nos o caminho e o impacto visível para todos de sermos um país dependente energeticamente eleva a prioridade. Portugal deve ambicionar a sua independência energética, ao mesmo tempo que deve potenciar os seus recursos naturais e geográficos na produção de energias alternativas e como nova porta de entrada de energia na Europa. Exige-se um plano nacional assente em três pilares (nuclear, renováveis e um Portugal exportador de energia) que garanta aos nossos filhos um país independente energeticamente.
Um país moderno, justo e socialmente equilibrado não pode ser dominado apenas por startups tecnológicas. Claro que termos unicórnios, produzirmos recursos humanos qualificados e exportarmos serviços e tecnologia é importante para o país e para a nossa economia. No entanto, esquecer todo o restante Portugal é condenar mais de 90% dos portugueses. A aposta na indústria e na agricultura são vetores fundamentais numa economia saudável e sólida.
Não existe agricultura sem água, não existe vida sem água e Portugal sofre um problema de falta de água. E não podemos culpar apenas as alterações climáticas e a seca extrema. A nossa rede de águas tem um nível de desperdício que é inaceitável. A aposta na eficiência da nossa rede de distribuição deve ser uma prioridade nacional.
Adicionalmente, o apoio à criação de projetos industriais que criem valor acrescentado, criem impacto nas comunidades onde se inserem e criem empregos deve ser um objetivo orientador do governo que conduzir Portugal nesta crise. Não podemos olhar apenas para unicórnios ou projetos de turismo. Definitivamente, não podemos olhar apenas para Lisboa ou Porto. Tal só é possível com uma alteração real do paradigma fiscal em Portugal. Não podemos apenas isentar festivais de Verão (e bem) ou visitas papais. Uma política fiscal mais justa, potenciadora da economia e que não asfixie os agentes económicos é fundamental para uma inversão da crise que se anuncia.
E se o Estado deve atrapalhar o menos possível a economia, o mesmo Estado deve estar empenhado em apoiar as famílias neste momento que se aproxima. Com a redução de capacidade financeira das famílias, o recurso ao Estado será maior e é fundamental um SNS capaz, um ensino com competência e qualidade e uma Segurança Social eficiente e consciente.
As novas “lutas de classes” dividiram a sociedade e dividiram o país. Que tenhamos a coragem de nos unir, de percebermos a emergência do momento e de tornar a luta contra a pobreza e pelos portugueses uma prioridade de todos e, acima de tudo, de quem nos governa.