1 A situação pandémica à escala mundial que vivemos desde o início de 2020, veio criar novos desafios ao Direito da Insolvência português, sobretudo em sede de recuperação empresarial. As iniciativas legislativas em curso deverão ter presente a experiência dos diferentes modelos recuperatórios adotados pelo legislador português nos últimos anos.

2 Em 2004, com a aprovação do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (diploma ainda em vigor atualmente, mas profundamente alterado), consagrou-se o primado da satisfação dos interesses dos credores, infletindo-se a tendência que o antecedeu durante mais de uma década. Como se afirma no preâmbulo do respetivo diploma legal de aprovação, “ao direito da insolvência compete a tarefa de regular juridicamente a eliminação ou a reorganização financeira de uma empresa segundo uma lógica de mercado, devolvendo o papel central aos credores, convertidos, por força da insolvência, em proprietários económicos da empresa”.

3 Em 2012, e na sequência da crise financeira de subprime, de 2008, foi aprovado o Programa Revitalizar, uma iniciativa do Governo apresentada como tendo “por missão otimizar o ambiente legal, tributário e financeiro do tecido empresarial português, tendo em vista a revitalização de empresas economicamente viáveis, que se encontram numa situação financeira desfavorável ou desajustada do seu modelo de negócio”. Nesse contexto, o modelo recuperatório de cariz exclusivamente creditor friendly foi temperado pela introdução no nosso ordenamento jurídico-insolvencial do processo especial de revitalização (PER), um processo judicial fortemente desjudicializado. Acreditou-se que facilitaria o enquadramento negocial do plano – através da diminuição do tempo de decisão, com vista à aprovação de um plano de reestruturação do passivo que vincule todos os credores e garantindo, em simultâneo, a capacidade produtiva, os postos de trabalho e a suspensão das ações judiciais (incluindo as ações de insolvência).

Infelizmente, este modelo negocial foi demasiado facilitador. Os receios manifestados na altura (e até as perplexidades suscitadas pela sua disciplina) confirmaram-se e o PER transformou-se num pesadelo para os credores e numa “via verde” para utilizações fraudulentas do mesmo. Tratou-se de um mecanismo excessivamente debtor friendly.

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Efetivamente, bastando-se com meras autocertificações emitidas pelo próprio devedor, com a anuência de um qualquer credor, inter alia, a disciplina jurídica do PER abriu o caminho para utilizações fraudulentas, que infelizmente se vieram a concretizar. Ao PER recorreram empresas inviáveis, com o mero propósito de retardar a sua declaração de insolvência – assim se prejudicou o regular funcionamento da economia, o Estado, os trabalhadores e os credores.

4 Por isso, em 2017, com o intuito de credibilizar o PER, foram introduzidas profundas alterações na sua disciplina jurídica que, na prática, vieram dificultar o acesso ao mesmo. Em contrapartida, para dotar o ordenamento jurídico de mecanismos recuperatórios eficientes, foi em simultâneo criado em 2018 um novo mecanismo recuperatório (o regime extrajudicial de recuperação de empresas, abreviadamente, RERE) – o terceiro instrumento recuperatório em contexto insolvencial. Aqui, procura-se recuperar a empresa na convicção de que os credores serão voluntariamente atraídos para a negociação extrajudicial, mobilizados pela crença na recuperação do tecido empresarial (e aliciados por benefícios fiscais). Infelizmente, os dois anos de vigência desta figura também confirmaram as suspeitas de muitos – a descrença dos credores em genuínos intuitos recuperatórios impulsionados pelo próprio devedor e, em consequência, a escassíssima utilização do mesmo. Para além de que o modelo legal oferecido às partes é excessivamente burocrático e só vincula os credores que voluntariamente participem no mesmo e, sobretudo, envolve elevados riscos (camuflados) para os credores.

5 Assim chegamos ao momento atual. O ano de 2020 foi (está a ser) marcado por uma crise pandémica a uma escala mundial. Em Portugal, a pandemia causada pelo vírus SARS-CoV-2 provocou uma grave emergência de saúde pública que obrigou, não só a uma resposta sanitária, mas também à adoção de um conjunto de medidas excecionais e transitórias de natureza económica e social.

Neste contexto, foi aprovado o programa de estabilização económica e social (PEES) que, entre outras medidas, veio acrescentar ao cardápio de mecanismos recuperatórios um novo processo – o processo extraordinário de viabilização de empresas (PEVE). Desde esta semana, à trilogia acima referida, juntou-se, provisoriamente (em princípio, até 31 de dezembro de 2020), um quarto mecanismo recuperatório, a meio caminho entre o RERE e o PER.

Foi apresentado como “um processo que tem caráter excecional e temporário, que pode ser utilizado por qualquer empresa que, não tendo pendente um processo especial de revitalização, se encontre em situação económica difícil ou em situação de insolvência iminente ou atual em decorrência da crise económica provocada pela pandemia da doença Covid-19, desde que a empresa demonstre que ainda é suscetível de viabilização”.

Pretende-se reforçar juridicamente o acordo de reestruturação do passivo obtido extrajudicialmente entre a empresa e os seus credores, através de uma certificação judicial (“super urgente”) do mesmo, dotando a empresa temporariamente de um balão de oxigénio (manutenção dos serviços públicos essenciais, suspensão de ações judiciais, incluindo as ações de insolvência) e blindando o acordo judicialmente homologado contra impugnações, designadamente em sede de insolvência que venha a ser ulteriormente declarada. Muito semelhante ao PER, embora com vários upgrades – proteção do financiamento interno da empresa, novas vantagens fiscais, vinculação apenas dos credores indicados pela empresa. Esperemos que as empresas saibam aproveitar esta oportunidade e que não transformem este processo numa nova “via verde” para se “entrincheirarem”, outra vez, em processos recuperatórios de empresas.

Como muito bem se afirmava em 1993, no preâmbulo do Decreto-Lei n.º 132/93, de 23 de abril (diploma que aprovou o Código dos Processos Especiais de Recuperação da Empresa e de Falência): “Se a expectativa de recuperação financeira da devedora claudica, cessa toda a legitimidade dos sacrifícios impostos, em nome da solidariedade nacional, às múltiplas entidades suas credoras. Os programas de recuperação económica da empresa insolvente não são planos de caridade evangélica aplicados aos que dela dependem, porque não é nessa vertente da vida social que a caridade encontra o seu lugar próprio.”