Em primeiro lugar, parabenizo o Observador por, dentro das suas competências e possibilidades, colocar o tema da Saúde Mental na “praça pública”. Espero que se possam desconstruir tabus, desmistificar preconceitos, combater o estigma, eliminar a desinformação e sublinhar a importância do tema para a sociedade. De facto, apesar do seu enorme impacto clínico, sociofamiliar e económico, as perturbações mentais não têm ocupado o lugar de relevo que merecem, e que se exige, nos centros de decisão. Apesar de vários planos e ideias redigidas, a verdade é que pouco tem saído do papel ou o que sai tem, em geral, sido efetivado de forma soluçante e muito insidiosa.
Pessoalmente, e tomando como exemplo as reformas de saúde mental e a sua operacionalização nos países mais evoluídos (como os escandinavos), considero que há linhas de atuação verdadeiramente essenciais, sem as quais pouco, ou nada, se alterará com significado. O inverno demográfico e a evolução tecnológica promoverão, forçosamente, a nível global, uma reflexão profunda sobre os modelos ocidentais de funcionamento socioeconómico vigentes. Em Portugal, os baixos níveis de literacia e a pobreza, que os “soldados” clínicos constatam no “campo de batalha” quotidiano, acrescentam (e acrescentarão) mais necessidades e complicações no âmbito assistencial.
Assim, é de primordial importância entender que uma reforma da saúde mental só trará benefícios concretos se realizada em paralelo com uma reforma cultural e social profundas e com um envolvimento sistémico, nomeadamente de várias áreas tuteladas por diversos ministérios.
Neste sentido, destaco quatro
medidas que me parecem essenciais:
O modelo tem de ser flexível e adaptado às exigências específicas de cada área assistencial, concedendo autonomia local para a concretização das necessidades identificadas. É completamente desnecessário criar mais e mais coordenações, mais e mais comissões, mais e mais grupos de trabalho (sobretudo para assuntos para os quais as soluções são há muito conhecidas), acrescentando burocracia e confusão ao processo de decisão e distanciando dessa decisão aqueles que realmente conhecem as necessidades da área em causa. Com uma cultura de transparência, exigência, responsabilidade e responsabilização é exequível entregar aos serviços de saúde mental (integrados nos hospitais) essa tarefa, possibilitando-lhes e facilitando-lhes a articulação direta com outras instituições locais (câmaras municipais, associações, centros de saúde, etc.) para a concretização dos seus objetivos.
Apesar da flexibilidade e da autonomia (incluindo financeira, obviamente não ilimitada) de que os serviços de saúde mental locais devem ser dotados, tem de existir um modelo de orientação ou uma premissa base a seguir. Na saúde mental, o modelo com conhecidos benefícios clínicos, sociais e económicos é há muito conhecido e baseia-se num funcionamento centrado na comunidade, procurando prevenir e controlar as doenças mentais a montante, aliviando, assim, os serviços hospitalares psiquiátricos que se focalizariam, então, no tratamento e acompanhamento das mais diversas perturbações mentais graves. Porém, para a concretização deste objetivo, é fundamental disponibilizar na comunidade um grande número de vários outros técnicos de saúde mental para além dos psiquiatras, nomeadamente: psicólogos, enfermeiros, técnicos do serviço social, terapeutas ocupacionais, técnicos de educação e outros. A dita psiquiatria comunitária não pode estar limitada a umas visitas domiciliárias e/ou a umas consultas de psiquiatria nos centros de saúde. Tem de, necessariamente, incluir na comunidade:
- acompanhamento psicoterapêutico individual e em grupo;
- centros de reintegração socioprofissional;
- centros de reabilitação e estimulação cognitiva;
- psicoeducação de doentes, familiares e população em geral;
- administração e controlo de medicações;
- consultadoria;
- unidades de cuidados continuados de saúde mental.
Por um principio de eficiente gestão de recursos humanos e infraestruturais, dever-se-ão privilegiar modelos metropolitanos de urgência, uma vez que:
- na psiquiatria não há nenhuma patologia psiquiátrica que necessite da intervenção emergente de um psiquiatra (como acontece, por exemplo, na cardiologia com os enfartes agudos do miocárdio, ou seja, um doente, uma vez dentro do sistema de saúde, pode ser posteriormente referenciado para uma avaliação pela especialidade, se necessário);
- é importante regular o recurso despropositado da população ao serviço de urgência; e
- Portugal dispõe de boas acessibilidades.
Por fim, é absolutamente essencial criar um regime legal que estabeleça critérios rigorosos para a constituição de estruturas residenciais permanentes especializadas no tratamento de doentes psiquiátricos crónicos das mais variadas faixas etárias e patologias. Porque, sim, infelizmente e por variadas razões, muitos doentes mentais graves não são sócio, familiar e profissionalmente reintegráveis e os lares não reúnem, de todo, condições técnicas ou infraestruturais para admitirem a maior parte destes doentes.
Sem a concretização de modelos assistenciais adaptados, realistas e flexíveis, assentes num modelo que privilegie a comunidade, focados na necessidade do cidadão e sustentados numa cultura de transparência, exigência, responsabilidade e responsabilização, pouco se alterará para melhor.
Mental é uma secção do Observador dedicada exclusivamente a temas relacionados com a Saúde Mental. Resulta de uma parceria com a Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD) e com o Hospital da Luz e tem a colaboração do Colégio de Psiquiatria da Ordem dos Médicos e da Ordem dos Psicólogos Portugueses. É um conteúdo editorial completamente independente.
Uma parceria com:
Com a colaboração de: